terça-feira, 28 de julho de 2009

O pintor de histórias

Entrevista com Miguelanxo Prado, autor de De Profundis



É um dos grandes mestres da banda desenhada mundial. O galego Miguelanxo Prado apresenta em Portugal a sua primeira longa-metragem de animação, De Profundis (nas salas a partir de dia 30). O Final Cut reproduz uma entrevista dada por Miguelanxo ao JL, durante o Cinanima 2007, onde o filme esteve em competição


Simpático, acessível, conversador, discreto, modesto. Dá a ideia que nem se apercebe da sua importância. Miguelanxo Prado é um dos responsáveis pelo facto da BD ter ganho universalmente o estatuto de arte. A nona. Mais do que uma coisa de miúdos ou uma estranha perversão de alguns adultos. Os seus álbuns falam por si. Basta apreciar o esplendor de Pedro e o Lobo ou Traço de Giz para compreender que de arte se trata.
O seu percurso é invulgar. Faz parte da primeira geração de desenhadores espanhóis que chegaram à BD vindos de outras áreas. Formado em Arquitectura, Miguelanxo começou por se dedicar à pintura. Até que descobriu na BD a forma certa de se expressar, de contar as suas histórias.
Em De Profundis, a sua primeira longa-metragem, desafia os caminhos do mainstream da animação. Um filme sem palavras, apenas a música de Nani García, interpretada pela Orquestra Sinfónica da Galiza. Passa-se no fundo do mar. E quem esteja habituado ao perfeccionismo estereotipado das grandes produções, estranhará a escassez de movimentos e a simplicidade dos recursos. Em compensação, os traços pessoais do autor. Todas as imagens foram pintadas pelo próprio. Sem a espectacularidade do movimento, mas com a uma sensibilidade íntima. De Profundis já estreou em Espanha. Espera-se que Portugal siga o exemplo. Para já é certo que está a ser preparada a edição em livro.

O seu percurso é curioso. Chegou tarde à BD e ainda mais tarde ao cinema. Porquê?
Há uma lógica nesse processo. Pertenço à primeira geração de autores que chegou à BD vinda de fora. As anteriores eram de pessoas que sonhavam com isto desde crianças. Em meados dos anos 80, começaram a chegar outros como Mattotti ou eu próprio que descobriram a BD como uma linguagem, mas não enquanto crianças fanáticas. O que me interessou foram as possibilidades expressivas e narrativas de utilizar aquele código para contar as minhas histórias.

E no cinema seguiu a mesma lógica?
A minha relação com tudo o que fui fazendo, mesmo com o cinema, sempre seguiu um pouco essa ideia. Na BD já fiz muitos livros. Por isso, conheço bem todos os recursos. Mas na animação foi o mesmo sentimento: descobrir um código que me permite contar histórias com outros elementos. A grande diferença é que o processo é muito mais complicado. Quando me interesso pela animação não é com o objectivo de fazer algo melhor do que a Disney ou mais divertido que os Simpsons. O que quero é colher essa ferramenta e usá-la para fazer as minhas coisas.

O que fez com que contasse esta história em animação e não em BD?
O processo foi muito longo: quatro anos de produção e pós-produção. Mas, antes disso, houve um período de muitas conversas com o músico, Nani García. O resultado veio dessa reflexão a dois. Ambos partilhávamos a sensação de que, enquanto criadores, nos processos em que colaborávamos ficávamos sempre limitados. Para fazer um filme é geralmente necessária a colaboração de muita gente. Mas esse trabalho de equipa vai rebaixando a implicação artística pessoal de cada um. Então, decidimos levar avante um projecto em que fôssemos totalmente responsáveis, sem qualquer outra participação a nível artístico... Ele pelo som e eu pela narrativa e pela imagem. Então comecei a pensar numa história que servisse. E havia uma linha que estava perdida nas gavetas. Tinha já pintado muitos dos grandes quadros que aparecem no filme. Todos com essa temática onírica e submarina. Tinha também pequenos pedaços de histórias que poderiam ter relação com esse mundo. Percebi que deveria ser um tipo de história diferente que permitisse trabalhar de forma autónoma. Olhei mais para a pintura, para poemas e coisas que não precisavam de um desenvolvimento tão estruturado. Cada quadro não é uma história, mas uma parte autónoma que proporciona sentimentos.

Mas entretanto também vai sair em livro.
Sai o livro com as imagens, em que aparece a história contada em texto. Só que não é muito narrativo. É mais poético. O livro pode ser interessante para um certo tipo de leitor ou para aquele público entusiasta do meu trabalho. Mas claramente o lugar verdadeiro da história é o filme. Qualquer outra possibilidade não é perfeita.

Já tinha feito um trabalho muito ligado à música: Pedro e o Lobo, a partir de Prokofiev. Só que aí faltou a música propriamente dita...
No Pedro e o Lobo chegámos a fazer algumas tentativas. Uma companhia de teatro fez uma montagem com uma pequena dramatização da obra, com máscaras, tendo como base os meus desenhos. Isto com a música de orquestra. Não funcionou bem. Penso que, a nível criativo e cultural, o século XX ficou caracterizado por duas coisas: a primazia dos códigos visuais (cinema, BD, televisão, videojogos, semiótica) e, em paralelo, da música popular nunca na história a música chegou a tanta gente. Foram dois fenómenos separados. Mas no final do século houve uma convergência através do cinema.

Alguns videojogos tentam condensar tudo isso.
São um resumo de todas as possibilidades. Há animação pura, programação, imagem estática, o que é muito importante para as crianças, e uma cada vez maior ligação com a música. Penso que o século XXI é do audiovisual. Com todas as possibilidades técnicas vamos ver coisas incríveis. Espectáculos visuais tanto de grande formato como em casa. As ferramentas que os criadores têm para desenvolver obras são incríveis. A relação entre imagem, narração e música vai ser o pilar central das artes.

Ajudou a que a BD fosse olhada com outros olhos, como uma arte. Irão os videojogos pelo mesmo caminho?
Os videojogos estão baseados na tecnologia 3D. Como aconteceu com a fotografia e com o cinema, neste momento há uma obsessão por substituir a realidade. De fazer uma árvore em que todas as folhas mexam que pareça mesmo real. Mas uma vez que já se tem a técnica, que sentido tem reproduzir a realidade? Não é necessário passar três anos a fazer uma árvore: sai-se à rua, olha-se para uma árvore e já está. Julgo que agora se vai abrir um espaço para se desenvolver as imagens de forma criativa, em mundos que não são reais e dar uma grande margem para o trabalho artístico. O autor pode passar a oferecer-nos o seu mundo interior. Recebermos um sonho e vemo-lo. E, numa segunda fase, pode estabelecer-se a interactividade com esse mundo pessoal e alternativo.

Voltando ao filme. Há pouca animação, no sentido convencional. Não lhe parece?
Muitas das conversas que estou a ter agora assemelham-se às que tinha quando comecei a fazer BD, nos anos 80. O que é a animação? Criar a ideia de movimento através de meios que não são a imagem real. Se faço mais de 10 mil desenhos e pinto e depois construo a ilusão de que eles têm movimento, isso é animação. Lembro-me de ver, nos anos 70, aquelas animações checas, feitas com recortes, em que os bonecos se mexiam aos solavancos, e as pessoas que estavam habituadas a ver o Bugs Bunny, diziam «isto não é animação». Agora, quando olha para aqueles filmes, apercebo-me de que eram magníficos. Qual é a finalidade de uma linguagem? É como dizermos que o Saramago não é muito bom escritor porque a sua letra é horrível. Ficámos limitados por um conceito de animação ditado pela indústria. Uma pessoa sozinha não poderia fazer um filme. Então, o desenho original, como será imitado por muitos, tem de ser simples, do tipo cartoon, com cores planas, sem o traço do pintor, sem texturas. O que se procura é a convicção do movimento. Há partes do Rei Leão que se assemelham a uma reportagem do National Geographic. Mas é isso que queremos? Mostrar que somos capazes de criar a confusão entre a animação e o real? O que me interessa na arte é a sugestão. Em todo o filme mantêm-se as texturas da brocha, do pincel, das cores, da tela, do papel, do traço pessoal. Todos os desenhos foram feitos por mim. Qual é o preço disto? Perde-se a espectacularidade do movimento. Para mim não é muito importante. O que estou a fazer é a propor um novo código para a animação de autor, se calhar, já presente em algumas curtas-metragens. Não podemos entender a animação como uma técnica exclusiva do mainstream.

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