terça-feira, 16 de junho de 2009

Olho por olho nos olhos da América


Entrevista com Jeff Nichols, o realizador de Histórias de Caçadeira


Um primeiro filme que regressa às mais primordiais emoções e que espelha uma tendência muito recente do novo cinema americano. Jeff Nichols, 29 anos, natural de Litlle Rock, Arkansas, filmou uma história de três irmãos sem nome e de um cão chamado Henry. E no Arkansas profundo, entre campos de algodão e uma estação de aquicultura, entre a lassidão e o tédio, entre o calor da terra e o vagar de um rio, entre três homens «marcados» por um destino que é fatal e trágico, e onde até paira uma personagem meia cega, cheio de ligaduras, como um profeta da desgraça...




FINAL CUT/ VISÃO: Uma das coisas que impressiona no seu filme é a forma como mistura um drama familiar e íntimo com uma dimensão de quase tragédia grega… Tinha este objectivo original de recriar o registo de tragédia num local tão improvável como o Arkansas profundo?

Jeff Nichols: O meu objectivo original era contar uma história sobre irmãos. Venho de uma família de três irmãos, e isso foi particularmente marcante. Uma das piores coisas que eu podia imaginar era que algo violento acontecesse a um dos meus irmãos. Foi neste sentimento que ancorou toda a história do filme. Porque cresci no Arkansas, esse foi um local apropriado para cenário da minha história. À medida que a história se foi desenvolvendo no processo de escrita, também se desenvolveu a história desta família. Penso que quando se escreve histórias sobre família consegue-se tocar em temas universais e verdades com as quais toda a gente se consegue identificar. Penso que, até certo ponto, é por isso que tantas pessoas comparam o filme a um drama clássico. O que o faz «grego» é o facto destas personagens estarem destinadas ao conflito. O pai destes três irmãos criou-lhes aquele «palco», eles não tiveram outra alternativa senão actuar ali. Nesse sentido, este filme é uma tragédia. Aqueles irmãos estão marcados.

O seu filme parece ter duas partes. Na primeira três pesonagens aparentemente inofensivas limitam-se a andar por ali. Mas de repente, por reacção em cadeia, a extrema violência surge. Isso e o facto do filme se chamar Histórias de Caçadeira tem alguma relação alegórica com a história dos EUA?

Eu tento não separar as personagens do «plot». O desenvolvimentos das personagens é tão importante como a progressão da narrativa. Para mim, as cenas desses homens a viverem o seu quotidiano são tão importantes como as cenas de luta com os seus meios-irmãos. O meu objectivo foi que tudo funcionasse num nível de realismo e criasse uma relação emocional entre o espectador e as personagens. Nunca quis que as pessoas sentissem que estavam a ver actores ou heróis em acção. A violência, por incrível que pareça, não é um estado natural para a maior parte das pessoas. Não se pensaria assim, vendo a maioria dos filmes, a TV ou as notícias, mas eu acredito que a maioria das pessoas são inerentemente boas e não-violentas. Queria que a violência fosse algo desajustado para estes homens. Daí até ser alegórico em relação à sociedade Americana... Penso que o filme é um comentário da justiça «olho por olho» e da inutilidade da vingança. A América, especialmente durante a era Bush, pareceu seguir esta via do «olho por olho». Como país, sentimos que até éramos bons nisso. O mundo, agora, julga-nos pelos resultados dessa lógica. Mas a vingança nem é uma ideia exclusiva da América. É universal. Esses sentimentos ocorrem em todos os humanos, em todas as sociedades.

A paisagem, o calor, os campos de algodão, o rio… quase que ganham um estatuto de personagem colectiva no seu filme…

Ao crescer no Arkansas, vivi rodeado destas coisas (campos de algodão, o rio de Arkansas, as quintas, etc). Acho que a paisagem é ao mesmo tempo bonita e triste. É o que eu sinto acerca de Shotgun Stories. Quis que o filme fosse belo e triste. E penso que não é possível separar as personagens do seu ambiente. Aqueles homens são produto daquela zona. A maioria dos lugares neste planeta fragmentaram-se em retalhos sócio-económicos. Son, Boy e Kid são homens trabalhadores. Cresceram desta terra.


Em Portugal, não é muito usual que filmes independentes americanos estreiem em sala. No entanto, no Indie, o cinema americano teve uma forte presença, e o filme vencedor foi Ballast. Podemos dizer que os filmes americanos ganharam um novo fôlego? Será que se inaugura uma nova era na cinematografia, que demonstra uma certo cansaço das grandes produções? E isso faz com que haja uma reaproximação às histórias de pessoas normais?

Essa é uma grande questão. Eu penso que sempre houve um desejo ou uma sede de realismo nos filmes. Só assim as audiências se ligam emocionalmente a si próprias e aos filmes. O realismo tanto pode estar associado a uma grande produção como a uma pequena produção. Apenas me parece que nas grandes produções isto se perde mais frequentemente. Apesar disso, há excepções: Este País Não é Para Velhos, Haverá Sangue, Eastern Promisses (David Cronenberg)… São todos grandes filmes que atingiam os mais alto nível de realismo. E todos são de 2007 [tal como o Histórias de Caçadeira]. Agora estamos numa época diferente, mas tenho fé em que o público continue a desejar ver histórias honestas.


Depois do seu primeiro filme ter tido tanto sucesso, em termos de crítica, festivais e prémios, vai manter o mesmo registo independente?

Espero que todos os meus filmes tenham uma voz independente, sem olhar a meios. Quanto mais dinheiro há num filme, mais opiniões surgem. Penso ser um dever de todos os realizadores, especialmente daqueles que iniciam a sua carreira, tentar manter a sua voz nos seus filmes. Eu luto para isso diariamente.



Porque se lembrou de Michael Shannon para o papel de actor principal do seu filme?

Porque Michael Shannon é o melhor actor do mundo. Eu sou um novato, não trabalhei com milhares de actores, mas continuo a pensar que ele é o melhor actor do mundo. Tive muita sorte em tê-lo no meu primeiro filme. Na verdade, escrevi o papel para ele, mesmo sem nunca o ter conhecido pessoalmente. Vi a sua actuação num filme de um amigo, e soube que queria fazer um filme com ele. Felizmente ele achou que o meu guião era suficientemente forte para vir até ao Arkansas, sítio onde nunca tinha estado, e passou um mês a trabalhar comigo, um tipo que ele nunca conhecera. Ficarei eternamente grato ao Michael por isso. À medida que o papel do Son crescia, eu precisava de alguém que pudesse ser ameaçador e carinhoso, furioso e triste, ao mesmp tempo. Isso é Michael Shannon.

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