sexta-feira, 22 de maio de 2009

Males de Família

Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin






Todas as famílias são disfuncionais. Nunca ouvi falar de nenhuma que não fosse. Ou que mais cedo ou mais tarde não se tornasse. Conheço até algumas que são exuberantemente disfuncionais por tão bem funcionarem. Tal já nem é assunto. Nos livros, nas peças de teatro, nos filmes nem se estranha: os pais são divorciados, os irmãos não se dão bem, a família nunca fala entre si o suficiente ou fala demasiado alto, e todos têm um segredo, uma história escondida e um trauma de infância. É suposto tal acontecer. Já ninguém se interroga, ninguém exclama, ninguém se aflige. Secretamente todos murmuram «pois». A disfunção familiar rouba espaço à ficção. E, perante isso, o que faz o cinema? Exagera. Neste caso, exagera e complica. A família de Um Conto de Natal é exageradamente confusa. Não ao bom estilo das famílias italianas, que se divertem na sua bagunça. Nem de uma família sul-americana que prospera na pobreza. É francesissimamente confusa. O filho odeia a mãe que odeia o filho que odeia toda a gente. Um primo abdica de amar em favor de um outro primo, e por isso se entristece, enquanto o outro se torna feliz. O pai finge-se de mãe, arruma a louça e cola os cacos familiares. O neto deprime-se em lugar da sua mãe. E todos, mas todos, se psicanalizam pelo Natal.
Catherine Deneuve é ela própria, mulher de um homem mais velho (o que a partir de determinada idade é quase indiferente), que descobre uma doença feia. O cancro é tratado de uma forma chocantemente racional, num algoritmo matemático, e os familiares apenas esboçam alguma preocupação sentimental com o drama. A própria não parece preocupada por aí além. Mas o jogo desenrola-se. Os únicos dadores compatíveis são os ajudantes mais indesejáveis: o neto psicótico e o filho mal-amado. Tudo se joga com a frieza cruel e calculista de um tabuleiro de xadrez, cheio de chantagens sentimentais e ódios explícitos. Isto, enquanto a situação limite é tratada com uma assustadora banalidade quotidiana num seio familiar demasiado incongruente para ser credível.
A família não se salva à beira do abismo. Também não se atira. Fica tudo mais ou menos na mesma, que é de forma nenhuma. Com as personagens centrais é difícil ter qualquer empatia. Nem chegamos a compreendê-las: não se percebe de todo porque mãe e filho se odeiam, nem porque o neto se deprime, nem porque o primo abdica do seu amor e depois deixa de abdicar. Nem sequer conseguimos acreditar naquela judia (pouco judia) que segundo nos dizem se reúne com a família para não celebrar o Natal.
Até se compreende que este conto de Natal se estreie fora de época, porque é profundamente anti-natalício e até anti-contista. Destrói o Natal no seu âmago: não retrata as famílias desmembradas que nem sequer celebram a boda, mas uma complicadíssima teia que insinua a noção de que a família é uma praga com a qual não conseguimos viver mas também não temos a capacidade para nos libertar. E, por outro lado, o emaranhado que nos coloca à frente está nos antípodas das histórias de Natal, que se querem simples e claras. E esta família é muito pouco familiar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Detestei o filme. Achei-o insuportavelmente pretensioso e muito francês. Seria um verdadeiro rombo na reputação de Cannes se tivesse ganho a palma de ouro o ano passado. Parabéns pelo texto
JMDuarte