sexta-feira, 29 de maio de 2009

Condomínio Fechado

Arena, de João Salaviza




Quinze minutos de filme concedem-lhe, no mínimo, o direito de usar com toda a propriedade uma das mais famosas, esfalfadas e vilipendiadas citações da história das frases-feitas mundiais. Um minuto de fama por cada minuto de película. Dá os tais 15 de que Andy Warhol falava. Quinze minutos de filme, mais ou menos meio quilómetro de fita, e nunca o cinema português palmilhou tanto mundo, galgou tanta fronteira, como agora, que a curta-metragem de João Salaviza, Arena, (produzida pela Filmes do Tejo) conquistou a Palma de Ouro, em Cannes. Nunca antes um filme português tinha chegado tão longe. Nunca se estendera tanta passadeira vermelha por baixo de uma produção nacional. «É um bocado atordoante», confessa João, 25 anos.

Sentiu-se estrela de Hollywood, frente a um batalhão de papparazi, a metralharem com as suas máquinas fotográficas, enquanto ele e o actor Carlotto Cota faziam poses na Croisette e assumiam os «sapatos de marca a fingir», comprados no Martim Moniz. Sentiu-se medalhado olímpico, quando, ao chegar de Cannes, tinha no aeroporto à sua espera uma comitiva do ICA, uma estação de televisão, jornalistas, imensos amigos e as felicitações do Presidente da República.

No seu telemóvel vão pingando os parabéns. A campainha parece um código morse intermitente. Amigos e mais amigos. Chegam para dar um abraço, para a celebração pós-Cannes... São membros da equipa, é o actor Carlotto, é o director de fotografia, é a directora de arte, é o homem da pizza, que vem finalmente alimentar o realizador, entre duas dentadas, muitos abraços e as perguntas da VISÃO.

João Salaviza ainda não pode falar da sua obra no plural – na verdade, Arena é o seu primeiro filme. Antes disso, fizera uma curta escolar no âmbito do curso de cinema, chamada Duas Pessoas, baseada num texto de Herberto Hélder. Também ainda não pode falar propriamente em carreira, porque essa implica passado, e João ainda está a saborear o presente e o muito futuro que tem pela frente. Mas na secção de galardões do seu currículo já se vislumbra um reconhecimento em progressão geométrica. Primeiro, com a curta da faculdade ganhou o prémio Take One, em Vila do Conde, destinado à produções das escolas. Depois, já com Arena, o Prémio para a Melhor Curta Portuguesa, na última edição do Indie Lisboa. Finalmente, o bolo que esmaga toda a cereja: a Palma de Ouro, de Cannes. Por falar disso, onde ficou a Palma? João e a namorada, Maria, entreolham-se. Ficara esquecida no carro, juntamente com a cópia do filme que viajou até França. «A cópia sim, foi um esquecimento arriscado».

Já resgatado do porta-bagagem, o filme repousa agora em cima de uma cama. Não é nada leve. Nem os quinhentos metros de película, nem a responsabilidade. João sabe que não pode abusar da fragilidade de casulo que arrastam consigo estas famas instantâneas. Nunca julgou que Arena pudesse ganhar, apostou na curta neo-zelandesa ou na animação francesa. Mas a verdade é que acreditou mesmo no filme que tinha em mãos. Apesar da inicial recusa no Festival de Berlim e de não ter sido aceite na secção da Quinzena dos Realizadores, nem na semana da Crítica, não houve tempo para desalentar. Nas vésperas da exibição e ante-estreia mundial no Indie Lisboa, soube-se que tinha sido seleccionado, de entre 3600 candidatos em todo o mundo, para a competição principal de Cannes – algo só alcançado há cerca de 15 anos por uma curta de João César Monteiro.

João Salaviza orgulha-se de ter estreado o filme no Indie. Miguel Valverde, um dos três directores, também se orgulha de ter sido o primeiro a ver Arena e a ter notado nesta curta, «pela sobriedade e por estar tão bem realizada, uma certa vocação internacional». De entre as cerca de duzentas curtas que se candidatam ao Indie, sente-se, em muitas delas, que «estão feitas cá para dentro», explica. «A partir deste prémio, as expectativas são altíssimas. Eu próprio ficaria muito assustado com todo esse batalhão de emoções... Foi uma importante porta que se abriu para o cinema português e para uma nova geração que está emergente», comenta.

Suburbanalidades
Uma «lança em África», «um pequeno passo para o realizador, um grande salto para a cinematografia nacional» - dir-se-ia, se se quisesse prosseguir assim, na senda do lugar comum como se inicia este texto. Mas tal seria lastimoso para falar de um filme que, afinal, de comum tem só mesmo o lugar. Arena passa-se num desses bairros problemáticos de Lisboa, que costumam comparecer nos noticiários e nas primeiras páginas dos jornais. Que costumam ser arena de tiros e alaridos vários, para entretenimento do espectador, na bancada do telejornal.
Este é um filme substantivo. Uma narrativa sem adjectivos, advérbios e decorativismos acessórios. O próprio autor define-o, dizendo: «Não há pontos de exclamação nos meus planos». João Salaviza não enxameou o filme de efeitos e peripécias. Não o carregou de diálogos de encher o ar entre as personagens. Tudo segue uma linha de planície sem dunas. E, no entanto, há algo na história que progride numa ascensão em espiral, sem passarmos por grandes sobressaltos climáticos, nem twists na acção. O realizador não queria que houvesse elipses, ou solavancos no tempo e no espaço. Queria atingir uma espécie de contiguidade espacial e temporal – o que só acentua a sensação de sufoco, de cerco, de claustrofobia.
A ideia era captar um momento, apenas, na vida de Mauro, um jovem em prisão domiciliária, com um pulseira electrónica no tornozelo, que faz umas tatuagens. Dentro da sua casa. Dentro do tal bairro guettizado. Dentro da arena. Dentro de um condomínio duplamente fechado.
A cada versão do guião, João ia expurgando, podando, simplificando, mais e mais, até ficar com a narrativa no osso. Até atingir aquele traço minimalista dos filmes do neorealismo, como em Ladrão de Bicicletas, de Vitorio de Sica: «Um homem precisa de uma bicicleta para trabalhar mas a bicicleta é-lhe roubada».
Não quis enfatizar a mensagem social do filme. Quanto à função política do cinema, prefere citar Manoel de Oliveira (foi assistente do montador em Singularidades de Uma Rapariga Loura), que diz que quem deve mudar o mundo são os políticos e os cientistas. «O meu filme não existe para representar uma causa, nem um bairro. Espero que ninguém se sinta representado. O filme apenas representa o meu ponto de vista, é tudo».
Seja como for, acredita que o cinema tem de ser «uma reacção a qualquer coisa», «um desconforto». E lembra que os irmãos Dardenne, uma das suas referências cinematográficas maiores, dizem que uma obra de arte deve ter sempre por base a pergunta «insurge-se contra o quê?».
Se alguma vez o realizador se entretivesse a fazer psicanálise dos seus próprios filmes, escreveria um livro sobre aquilo que não queria que eles fossem. E o primeiro item seria «moralistas»: «É difícil não se ser moralista. É difícil conseguir anular esse defeito intrínseco que todos nós carregamos». Segundo mandamento: «Não queria que o meu filme se parecesse com um filme».

Jaula dentro da jaula
Arena é uma história de silêncios, ruídos, ecos, muros, paredes, nada, coisa nenhuma... Na verdade, nem temos a certeza de lhe podermos chamar história, sem que isso lhe retire algo da leveza que nos dá uma tão fluente passagem até ele. Há esse rapaz que está preso «lá fora». Mas o «lá fora» dele está cheio de grades nas janelas – como nas prisões. Há imensos muros e betão – como nas prisões. Há pátios interiores, habitados de ecos e vozes. Há passadiços, tatuagens, rixas e escaramuças entre grupos. Só não há guardas? Afinal, neste «bairro-arena», ou neste «bairro-prisão», até a autoridade comparece, através da pulseira electrónica, como uma grilheta do século XXI.
João Salaviza capta a violência, as agressões entre habitantes do bairro, da mesma forma que filma o resto: «Com distância e tempo». O oposto daquilo que se costuma fazer nas cenas climáticas. Afasta-se do óbvio e do grande plano, pura e simplesmente, distanciando-se, em olhares frontais, com ângulo de 90 graus. Assistimos a um espancamento ao longe, como da tal bancada observacional, do espectador distante. E isso sublinha a «indiferença perante a violência». Foi filmado no Bairro da Belavista, em Lisboa, mas podia tê-lo sido num qualquer desses subúrbios periféricos e despigmentados, em Paris ou Madrid. As câmaras captam por acaso, uma velhinha que assiste a uma cena de pancadaria entre os actores. A cena era simulada, ela não o sabia, mas encara a situação com a impassibilidade do quotidiano. «Eu não reterei com a câmara o que não é reiterado pelas pessoas».
Outra coisa que contribui para a carga naturalista do filme é o facto do próprio casting dos miúdos ter sido constituído entre moradores de bairros do género. Um pequeno luxo para uma curta metragem: dois meses de pré-produção. Não foram os miúdos que se moldaram ao guião, foram os diálogos que se ajustaram às suas próprias expressões e modos de falar. «Os diálogos escritos por mim eram francamente piores, muito mais desinteressantes». Carlotto é o único profissional, que vem do teatro e já entrara em Odete, de João Pedro Rodrigues, «mas o maior elogio que pode receber é pensarem que ele também não é actor».
Filho do realizador e montador Edgar Feldman (que ganhou o prémio de Melhor Curta-Metragem portuguesa no último DocLisboa, com O Segredo), João está mais do que familiarizado com câmaras e montagens. Ser assistente de montagem no último filme de Oliveira, fê-lo «aprender imenso»: «Foi uma lição tremenda. Percebi que em todas as suas opções existe uma intencionalidade. É isso que é fundamental no trabalho de um realizador, ter critérios». Também deu uma ajuda meramente técnica a uns amigos, na montagem de uns spots partidários, e ficou surpreendido com a facilidade com que uns faits-divers irrelevantes se propagam de jornal para jornal.
Durante um ano, em 2006, estudou cinema na Argentina, através de um programa de intercâmbio. Testemunhou o entusiasmo com que os argentinos acolhem uma nova geração de cineastas, um fenómeno semelhante ao que acontece no cinema romeno, que «se aproximou da realidade concreta das coisas, e da contemporaneidade». Agora, olha para o tempo de faculdade, e lamenta retrospectivamente o quão afastado andam os portugueses do seu próprio cinema.

Em Arena, João «armou-se em Vicent Gallo», fez tudo, do argumento à realização e à montagem. Mas foi demasiado duro, andar obcecado com pormenores técnicos, como o som - os sons do bairro ganham, no filme, uma dimensão de personagem colectiva omnipresente. «Um realizador é sobretudo alguém que toma decisões, ao fim de um dia de rodagens foi tudo o que ele fez: tomou centenas de decisões». Mas o importante, já se apercebeu, é conseguir aquilo a que todos os artistas grandes almejam: voz própria. Acredita que o que cativou o júri de Cannes e do Indie foi o «sentido do ponto de vista»; «um olhar específico sobre uma realidade complexa». Mas a curta laureada tem algo de muito português: «Tentei filmar o que acontece quando nada muda». Que é, de facto, o que mais nos tem acontecido por cá: nada mudar... Até que de repente, nos cai um Nobel e um palma de ouro do céu. Para nos fazer acreditar que, afinal, nem tudo está perdido.

1 comentário:

Ladislau disse...

Esse Salaviza é uma espécie de Cristiano Ronaldo dos filmes. Deviam passar o filme dele em loop em horário nobre, em vez da Manuela Moura Guedes. Se ainda por cima é dos curtos. Com que raio: sebem-me dizer como posso ver a porra do filme? É que este ano não me deu jeito ir a Cannes, estava ocupado a preenher o irs