domingo, 26 de abril de 2009

Até ao fim deste mundo...

... e de um outro. Um realizador andante, orgulhosamente só e muito radical: Werner Herzog é «herói independente» do IndieLisboa



Em 1971, Werner Herzog fez este estranho filme chamado Fata Morgana, o primeiro de uma trilogia de ficção científica. A ideia parte de um grupo de extraterrestres que chega, pela primeira vez, à Terra, vindo de Andrómeda. Quando os olhos dos espectadores extravasavam de naves espaciais, tripulações inteiras vestidas com pijamas de lycra e de Spocks de orelhas em bico... Herzog realiza o verdadeiro filme alienígena. Também rodado nestas zonas lunares do planeta, no buraco negro que é Lanzarote, onde cada árvore que se ergue é uma insolência, nos desertos feios, cheios de tubos, postes, barracões ou na imensidão sideral do Sara. E depois, aquele longo travelling em torno de coisa nenhuma, a insistir, a insistir, até os lugares comuns se tornarem incomuns. E depois, a música Suzanne, de Leonard Cohen, a acompanhar-nos nesta repisada visão: «And Jesus was a sailor / When he walked upon the water / and spent a long time watching / from his lonely wooden tower…» Um primeiro olhar de Jesus ou de um alienígena (tanto faz) sobre estas coisas bizarras que acontecem na superfície terrestre. É este olhar, inicial e puro, de quem nunca está saciado porque nunca se habitua, que caracteriza a obra de Herzog. Um olhar de inquietude, que sempre admite o espanto. Um olhar «em estado de transe», «um olhar táctil», um «olhar que escava fundo». Desde a sua primeira curta (Herakles, 1962), até à última longa (Encontros no Fim do Mundo, 2007), ao longo de 52 filmes, o cineasta alemão demonstrou esta capacidade de estar sob o efeito do assombro e o imenso talento de saber deslumbrar-se, e de encontrar o insólito no quotidiano.

Este realizador move-se a «curiosidade», solitário e obstinado, totalmente livre de preconceitos e de politicamente correctos. Totalmente imune às contaminações das indústrias pesadas, dos mercados autistas, das receitas de bilheteira, das tendências, das novas e velhas vagues. Por tudo isso, explica Nuno Sena, Herzog é um dos «heróis independentes» da sexta edição do festival. Terá direito não só a uma retrospectiva composta por 26 filmes (alguns nunca exibidos em Portugal, nem em cinematecas, nem existentes em DVD), como a uma exposição no Espaço BES e ao lançamento, em colaboração com as Edições 70, do livro Sinas de Vida, Werner Herzog e o Cinema, de Grazia Paganelli, que virá ao festival.

Mulheres não entram

Herzog não se esforça por ser atípico – a sua intransigência inconformista impõe-no. Nem por ser experimentalista – sempre soube exactamente como e o que queria fazer. Nem por metaforizar – «filmo o que vejo à frente dos meus olhos».

Por filmar nos sítios mais remotos e impossíveis do planeta ganhou a fama de realizador radical. A sua curiosidade levou-o até à cratera de um vulcão em ebulição, na ilha de Guadalupe (La Soufriére, 1977); a enfrentar mosquitos, paludismos, enxurradas, doenças e insanidades várias, para levar um barco a vapor encosta acima pela selva peruana, porque o seu personagem, um melómano intransigente (Klaus Kinski), tinha o sonho de montar no centro da Amazónia o maior teatro de ópera do mundo (Fitzcarraldo, 1982); a seguir até ao ponto onde todos os meridianos do planeta se encontram, na Antárctida (Encontros...). No fundo, muitas das suas personagens são «deslocalizadas», por isso encontram esta pureza no olhar, a de ver a paisagem e as coisas pela primeira vez. É assim com os cientistas, biólogos, glaciologistas, que Herzog encontrou no Pólo Sul, acantonados em lugarejos de faroeste, feitos de barracões, laboratórios e estaleiros de obras. Também com os soldados alemães que ocupam uma fortaleza numa ilha grega esquecida, esmagados sob a estranheza do lugar (Sinais de Vida, 1968). Ou com Aguirre, o Aventureiro (1972), conquistador espanhol que se embrenha para lá dos Andes. Com o pobre Kaspar Hauser (1974), lançado de repente no mundo, depois de uma vida de reclusão numa cela. Com os surdo-cegos, em País do Silêncio e da Escuridão, 1971, e os anões, em Até os Anões Começam de Pequeninos, 1970. Com o louco amante de ursos que se atravessa no seu território selvagem, no Alasca, e acaba devorado por um deles (Grizzly Man, 2005). Com o próprio Nosferatu (1979), o conde Drácula (outra vez, o alucinado Kinski) que regressa do resguardo tumular da Transilvânia por amor de Lucy (Isabelle Adjani).

Curiosamente, notou Nuno Sena, ao rever toda a obra de Herzog para a programação, esta Lucy é das raras mulheres que aparecem com algum protagonismo na cinematografia de Herzog: «As mulheres interessam-lhe, ele foi várias vezes casado e tem filhos, mas os filmes têm um universo quase exclusivamente masculino. E isso não é fraqueza, mas marca autoral. As personagens testam o tempo todo os seus limites, tentam sobreviver em confronto com as adversidades da natureza... É um universo viril, de luta, loucura, demência, excesso de energia.» Se calhar, ele nem admitia a pertinência desta observação: «Dizer-lhe que não existem mulheres nos seus filmes poderia parecer-lhe tão absurdo como afirmar que não existem... zebras. E, por acaso, até existem...», nota.

Por coincidência Jacques Nolot, escritor, actor, realizador, o outro «herói independente» desta edição, é um homossexual assumido. Por excesso ou défice de virilidade, fica este ano a secção com menos cromossoma X.

Acabado de regressar da China, Herzog, cineasta errante, prepara-se para filmar com David Lynch, e não virá a Lisboa. «Ele não gosta de retrospectivas, diz que os filmes que está a fazer lhe interessam sempre muito mais do que os que já fez», conta.

É um realizador que sabe o que quer. «Inteiramente seguro», continua Nuno Sena, «no set está concentrado como um cirurgião. Teve um foco de produtividade nos anos 60 e 70, e depois há um assomo de criatividade a partir dos anos 90». No Indie, «nunca homenageamos mortos, nem cineastas batidos». Não dão prémios carreira pelo balanço fechado. «Homenageamos sempre alguém que ainda pode revelar-se e surpreender.»

Dedicado a esta tarefa de filmar o «infilmado», de mostrar imagens nunca vistas, territórios ainda não desflorados, Herzog ganhou este olhar alienígena, que se enriquece de espanto e maravilha, e nos envolve na descoberta. O seu gosto pelo rarefeito, pelo insólito, pela hipérbole é ligeiro e profundo ao mesmo tempo. Nos seus filmes, as definições de ficção e documentários atiram-se para os braços uma da outra. Este foi o realizador que separou os «factos» da «verdade», e escreveu na Declaração do Minnesota, em 1999: «Os factos criam as regras e a verdade cria iluminação»; «Os factos têm, por vezes, o estranho e bizarro poder de fazer parecer inacreditável a sua inerente verdade.» Herzog não filma os factos, prefere a verdade, ainda que seja mentira, ou, como lhe chama, «uma verdade intensificada»: «A pura invenção pode descrever com mais exactidão uma realidade íntima e profunda.» Talvez por isso, apresente a sua biografia, «verdadeira» num dos seus vários níveis, como um rapaz, nascido em 1942, que «cresceu numa aldeia perdida das montanhas bávaras sem ver filmes, televisão ou usar o telefone. Começou a viajar a pé aos 14 anos, e fez a sua primeira chamada telefónica aos dezassete».


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