sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Peter Handke acredita em Anjos

Encontro imediático com Peter Handke







A primeira vez que veio a Portugal, Peter Handke percorreu o país, de lés a lés, de mochila às costas. Agora, na sua primeira visita ‘oficial’, queixa-se de estar enclausurado num hotel de cinco estrelas em Cascais. Isto apesar da magnífica vista sobre o oceano. O pretexto foi o EFF, onde o escritor esteve a apresentar dois filmes que realizou e outros quantos que escreveu o argumento com e para Wim Wenders. De momento, já não tem asas para o cinema. Dedica-se de corpo e alma à escrita, o país onde decidiu morrer.

É autor de um dos mais belos guiões da história do cinema, As Asas do Desejo. Acredita em anjos?
Peter Handke: Quando escrevi o texto para As Asas do Desejo não acreditava. Mas com a idade passei a acreditar. Acredito em anjos da guarda. Não sei se cada pessoa tem um. Mas sinto que algumas vezes sou protegido por um anjo, que me avisa quando estou a cair. Pede-me que preste atenção a coisas importantes. Ele diz-me: «Abranda, não andes sempre a correr».

Deve ser muito difícil trabalhar com Wim Wenders, num projecto tão pessoal, artístico e filosófico quanto As Asas do Desejo. Como aconteceu?
Na verdade, a ideia não foi minha. Não escrevi o guião propriamente dito, apenas alguns textos, monólogos e situações. Ele adaptou-as ao filme. A história surgiu durante a montagem.

Mas acompanhou todo o processo?
Apenas a parte final. De início, não assisti às filmagens. Estava na Áustria, e o Wim Wenders em Berlim. Eu escrevia diariamente. E enviava sonhos e monólogos pelo correio. Muitos deles não foram utilizados. Depois estive lá, em Berlim, durante a montagem. Insisti que a linguagem devia ser a coluna vertebral. Sem ela o filme não teria funcionado.

Trabalhou com Wim Wenders em outros filmes. Gostaria de voltar a fazê-lo?
Sim. Mas estamos numa outra fase. O cinema dele já não é a mesma coisa. Tem outras preocupações. A verdade é que, hoje em dia, se tornou mais difícil o financiamento de um filme. E comigo como argumentista provavelmente não conseguiria recolher dinheiro nenhum.

Os seus guiões têm uma forte componente literária. Contudo, é comum pensar-se que os guiões são textos técnicos e frios com o objectivo funcional de proporcionar a realização de um filme. Acha que os guiões podem ser considerados literatura?
É perigoso que um guião se torne literatura. Mas não consigo evitá-lo. Também há demasiada literatura nos guiões de Antonioni. Contudo, ao ver os filmes, apercebemo-nos que esta desaparece. Acho que não é assim tão problemático que o argumento tenha literatura. O realizador pode depois silenciá-la se achar conveniente. Foi o que fez Antonioni e Wim Wenders. Mas Movimento em Falso foi o único guião escrito mesmo para o Wim Wenders. Em A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty ele simplesmente adaptou o meu livro.

Os seus guiões são literários, mas os seus livros tendem a ser cinematográficos. Em quê que ficamos?
É verdade que, por vezes, enquanto escrevo um romance digo a mim próprio: «Imagina-o como se fosse um filme». Tal ajuda-me a afastar-me, a ter outra perspectiva, a ver melhor. Sou o médico de mim próprio.

Quando lhe surge uma ideia, como é que sabe se vai resultar num guião, num romance ou numa peça de teatro?
Sou um escritor, um contador de histórias. Quando estou a escrever sinto-me em casa. Sempre que fiz guiões não me senti em casa, obrigo-me a ser uma outra coisa, não sou um guionista por natureza. Quando estou a escrever prosa, sozinho, distante de tudo, sinto-me a mim próprio, sinto-me um operário.

Porque é que a determinada altura quis realizar os seus próprios filmes. Não se sentia satisfeito com o que faziam dos seus guiões?
Não sei bem porque o fiz. Na altura, em que realizei The Abscence era bastante mais simples para um escritor fazer um filme. Para mim foi mesmo demasiado fácil. Hoje em dia não o faria. Os jovens realizadores precisam de dinheiro para as suas produções, e eu não quero competir com eles. Acho que esses sim, deviam ser apoiados, e não os escritores, como eu. Não seria justo, porque eu não dediquei nem tenciono dedicar a minha vida ao cinema. Para mim foi uma expedição a outro país. Eu era apenas um espectador de cinema. E um escritor transformar-se em realizador é uma espécie de conto de fadas. Esse conto já não dá. O Paul Auster tentou fazer um filme, mas a experiência também resultou mal.

Não ficou contente com o resultado dos filmes que fez?
Fiquei agradecido, mas não contente. Foi uma experiência muito profunda, apercebi-me de que podia trabalhar com outras pessoas, estar atento a tudo, e acreditei que poderia ser assim. Enquanto filmei, senti-me mais real do que enquanto escrevia. Mas quando o filme acabou, apercebi-me da farsa. Aquela não era a minha vida.

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