terça-feira, 24 de novembro de 2009

O gosto de Filipe Abranches


O Eclipse (L'Eclisse, 1962) de Michelangelo Antonioni

“Eu estou em Florença, para ver e filmar um eclipse solar. Está um frio inesperado e intenso. O silêncio é diferente de todos os outros silêncios. Luz pálida, diferente de todas as outras luzes. E depois a escuridão. Quietude total. Tudo o que me vem à mente é que durante um eclipse até mesmo os sentimentos provavelmente param.” (Michelangelo Antonioni)



Naturezas mortas

Esta sequência nunca me abandonou desde a primeira vez que vi o filme e sei que teve o mesmo efeito noutras pessoas. Reteve-se na minha memória por alguma razão. Provocava-me desconforto e inquietação. Surgiu recentemente a oportunidade de a analisar mais a fundo e munido de outras ferramentas teóricas. A cena é uma ilustração da passagem do espaço qualquer e desconectado para o vazio. O filme vive muito de uma inventariação de pedaços desconectados do espaço atravessado por Vittoria que se reagrupam no final numa espécie de superfície branca e vazia. Ganha a composição, já referenciada, como processo construtivo de signos. As situações puramente ópticas e sonoras, passam-se no espaço qualquer, e Deleuze chama-lhes opsignos e sonsignos. Tínhamos falado das imagens objectivas tidas num processo de verificação (Antonioni verifica o seu tempo). Já não é possível organizar tal tipo de elementos num sistema orgânico e de acções. Só caberão numa concepção geométrica do quadro que estabelece no seu interior relações de medida e distância, sendo a acção o deslocamento das figuras no espaço. Estamos perante um cinema de coordenadas que nos pretende transmitir, nomeadamente a ruptura de um casal, não pela explicação verbal ou narrativa. A última cena é uma verificação de uma ruptura. A ideia com que ficamos é a de um círculo contínuo, fluxo, que desloca essa ruptura para o próprio mundo à beira do colapso. A questão em Antonioni é: não sofremos do Eros, o próprio Eros está doente. Reforço a importância de um movimento de mundo gerado por elementos imóveis. Há um drama óptico vivido pelos personagens. Di-lo Claude Ollier nos Cahiers. Sem explicação dramática de uma ruptura, permanente no cinema clássico, o drama torna-se um drama óptico vivido pelo personagem. É o resultado de uma agenda de esvaziamento espacial que se reflecte nos próprios indivíduos. Cria-se para lá de uma ausência do outro, uma ausência de si mesmo. Neste ponto o olhar ganha extrema importância e carece ser revisto. Não é possível esquecer o olhar de Vittoria/Viti, mesmo depois de ver o filme. É algo que fica como “traço” de um personagem na nossa memória. Enquanto escrevo esforço-me por tentar lembrar-me de uma participação de Monica Viti num outro filme que não de Antonioni. Sem sucesso. Talvez porque determinados actores parecem ter sido talhados por determinado criador. Para onde olha Vittoria? Esse traço é transversal a todo o filme, no início da sequência está lá, precisamente antes de a perdermos. Ela olha a copa da árvores e depois olha como que para um fora de campo onde não há nada. Passamos para o bairro moderno. Parece, no momento em que começam a surgir pessoas anónimas, que esse olhar foi transmitido e que passou a viajar de rosto para rosto, sem destino. Robbe-Grillet é mais radical. Os sons e as cores, o táctil (operado pelo jogo de mãos em Bresson, por exemplo), eram desadequados à verificação. Estariam ainda muito ligados estes elementos às emoções e reacções. Salvaguardava somente as descrições visuais que operem por linhas, superfícies e medidas (Deleuze). Cinema de coordenadas e eminentemente cartográfico. Pensemos em meridianos, latitudes e longitudes. Paira assim um olhar imaginário, como concluem alguns ensaístas, que faz a ligação das partes do espaço partido. O que é fascinante no cinema de Antonioni é estarmos a partilhar de uma leitura de signos de um mundo próprio (sem equivalente no real) ao mesmo tempo que os personagens. Daí a sensação de perca e ausência, perante imagens nuas, que irão afectar tanto espectador como protagonistas.

Inércia e tempos mortos? Pois sim, mas que se inscrevem no filme como seus elementos constituintes. O conceito de Natureza Morta encontra aqui certo eco. A imobilidade é a matéria-prima num processo de verificação e observação dos objectos e da natureza.

Vimos que esta cena é uma réplica sem protagonistas de outras que se passaram no mesmo local com os respectivos intervenientes. Há aqui uma intencionalidade de limpar todos os códigos narrativos e formais bem como os vestígios do elemento humano. Diálogos, personagens, narrativa explícita é retirada. No entanto alguns elementos de segundo plano, como o autocarro, o homem a cavalo, a enfermeira com o bebé, ou sejam, as evocações e o ”excesso” ou as sobras de uma narrativa prévia codificada, permanecem. Trata-se de um paralelismo formal que questiona, no meu entender, a próprio natureza do cinema. O homem que atravessa a passadeira, com a mão a entrar no plano e a mulher loura que se vira, são disso exemplo como duplos ou fantasmas que nos evocam o suspense do cinema clássico. A alternância de uma hierarquia disputada entre primeiros planos e planos de fundo parece ser uma característica deste cineasta. Esta permuta tende no sentido de cada “camada” ou cortina de imagem poder concorrer para o sentido da outra. Normalmente as paisagens reflectem um estado de espírito do protagonista, mais do que uma intensidade psicológica revelada pela expressão ou pose do actor. A sua pose só significa algo enquanto integrada numa certa composição. Apontado como um abstraccionista, Antonioni contrapõe que naqueles sete minutos todos os objectos têm significado. Apenas restam os objectos da aventura, num mundo que devorou os seres vivos. A arqueologia do presente para Deleuze, como este refere. Reforça-se a ideia de que um espaço vazio é um espaço puro, sem atributos, mas não um vácuo.


Filipe Abranches é ilustrador, autor de BD e realizador de cinema de animação. O seu primeiro filme, Pássaros, recebeu o Prémio Tobis no Cinanima 2009

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