quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O homem da máquina de filmar


Entrevista com Jonas Mekas





Fugiu da Lituânia, nos anos 40, após escrever um poema anti-estalinista, mas foi apanhado pelos nazis e passou um ano num campo de trabalho na Alemanha, a que se seguiram quatro num campo de refugiados. Até que foi acolhido pelos Estados Unidos. A história de Jonas Mekas, 87 anos, confunde-se com a História do Século XX. Falámos com este realizador pioneiro, homenageado no DocLisboa, considerado o pai do cinema avant-gard nova-iorquino

Dez minutos antes da nossa conversa, encontramos Jonas Mekas na rua, rodeado por uma equipa de cinco pessoas. Um deles, filma os seus passos, enquanto atravessa a passadeira para a Culturgest. Quando finalmente chegamos à conversa, temos a sensação de estar a falar com um parente próximo de William S. Burroughs. Ele esteve lá, a sentir o ritmo da Beat Generation.

Desde os anos 50 que Jonas Mekas mantém um diário filmado. Vai recolhendo pedaços da vida e filmando os amigos. O que, por si só, poderia não ser nada de extraordinário caso a sua vida não fosse tão cheia e os seus amigos tão famosos. Nos seus filmes entram Andy Warhol, John Lennon, Yoko Ono, Alen Ginsberg, Salvador Dali, Martin Scorsese ou o clã Kennedy.

Formou uma das mais importantes instituições do cinema independente americano, a Anthology Film Archive, e é considerado para muitos realizadores, como Jim Jarmusch, uma influência decisiva. Trabalhador inveterado, já depois dos 80, dedicou-se a projectos megalómanos, como os 365 filmes, que disponibilizou, à razão de um por dia, no seu site na Internet, ao longo de 2007. E as 1001 noites filmadas que agora prepara. Além de cineasta, é também vocalista de quatro bandas nova-iorquinas (uma delas com John Zorn), artista plástico e escritor. Uma enorme retrospectiva da sua obra está a ser preparada pela Galeria Serpentine, em Londres, para 2010.


JL: Comecemos pelo futuro. Está a preparar um grandioso projecto, que se chama 1001 Noites na Internet. Em que consiste?

Não é assim tão grande... O projecto das 1001 Noites segue-se ao dos 365 Dias. Durante o ano de 2007, preparei uma curta-metragem por dia, que esteve disponível no meu website. Foi um desafio tão grande e cansativo, que precisei de um ano de intervalo para fazer outras coisas. Nesse período fiz a longa-metragem Lithuania and the Colapse of USSR. Agora estou a começar lentamente o projecto das 1001. Mas não será diário, isso seria demasiado exigente. Também não tenho a certeza se estará disponível na Internet. E, apesar de se chamar 1001 Noites, nem todos os filmes se passam de noite, de resto, tal como acontece nos contos árabes.


Mas vai contar 1001 histórias?!

Eventualmente… demorará alguns anos. Mesmo que contasse uma por dia, demoraria cerca de três anos. Mas esta é apenas uma das coisas que estou a fazer... Vou lançar dois livros na próxima Primavera...

De poesia?

Não, um de pequenas histórias, que fazem uma espécie de autobiografia. O outro é continuação dos meus diários escritos. Além disso, estou a preparar a maior exposição que já alguma vez tive, que será na Serpentine Gallery, em Londres. Talvez inclua o projecto dos 365 dias, bem como algumas peças sonoras, várias instalações. Vou apresentar também grande parte dos meus filmes inacabados.

Desde 1950 que faz um Diário Filmado. Faz ideia de quantas horas já gravou?

Não sei, mas posso dizer que a parte editada em filme (tirando o vídeo) deve rondar as 30 horas.

Pouco depois de chegar aos Estados Unidos, uma das suas primeiras inquietações foi pedir dinheiro emprestado para comprar uma câmara de vídeo. Porquê?

Simplesmente precisava de filmar. As pessoas têm necessidades diferentes. Eu tinha a necessidade de filmar.

Começou por filmar pedaços da sua vida. Porquê? Porque não quis fazer um filme convencional?

Queria dominar o instrumento de trabalho, antes de tentar fazer um filme à Hollywood. No princípio foi apenas isso. Uma espécie de teste. Essas primeiras imagens podem ser vistas em Lost Lost Lost.

Na Lituânia, quando fugiu para Ocidente com o seu irmão, estava a fugir do nazismo ou do estalinismo?

Na verdade de ambos. Mas só consegui escapar de um (o estalinismo). O outro apanhou-nos.

Qual dos dois mais o assustava?

Naquela altura, os soviéticos. Tínhamos a esperança que se chegássemos a Viena talvez conseguíssemos passar para a Suíça. Na verdade – o que eu vou dizer agora nunca contei em nenhuma entrevista –, chegámos a fazer um contacto com pescadores dinamarqueses que nos levariam à Suécia. Mas nunca conseguimos lá chegar.

Ficou um ano num campo de trabalhos forçados em Hamburgo, e depois foi para os Estados Unidos. Como?

Não emigrei. Fui levado pelas Nações Unidas. Depois da Guerra, passei quatro anos num campo de refugiados. Esses campos foram desmantelados e a ONU levou as pessoas para fora dali. Uns para o Canadá, outros para a Austrália. Eu fui parar aos Estados Unidos.

Agradou-lhe o destino?

Não me fazia qualquer diferença, o que eu e o meu irmão queríamos era sair dali e ir para qualquer sítio, para onde pouco importava. Tivemos a nossa dose de campo de refugiados. Aconteceu que cheguei a Nova Iorque numa altura muito interessante, em que estava muita coisa a acontecer. Não estou a falar apenas de cinema. Falo da beat generation, do teatro, da música, do expressionismo e depois do cinema independente. Tudo aconteceu ali entre os anos 50 e os anos 70.

E o Jonas Mekas estava mesmo ali no meio, como é que fez para conhecer essa gente toda?

Aconteceu de forma natural, frequentávamos os mesmo sítios, os mesmos bares, os mesmos espectáculos.

Na Lituânia escreveu um poema anti-estaline...

Foi o que me obrigou a sair de lá...

Só voltou nos anos 70, para visitar a sua família, como se pode ver no filme Remiscences of a Journey to Lithuania... Já era seguro na altura?

Não. Mas a União Soviética já começava a abrir um bocado. Estaline já tinha morrido. Lentamente notavam-se algumas mudanças. Apesar disso, tive dificuldades. Durante essa visita não dei um passo sozinho. Não pude filmar a minha mãe e o resto da família sem ser observado.

Depois do fim do regime soviético e da independência da Lituânia, em 1992, regressou ao seu país?

Vou lá de vez em quando. Tenho lá um irmão e vários parentes.

Criou o Anthology Film Archive, um dos mais importantes centros de cinema de vanguarda nos Estados Unidos. Hoje qual é a sua função?

Eu mostro-lhe o prospecto... É muito activo. Todos os dias tem quatro ou cinco diferentes programas, com duas salas de cinema, biblioteca e preservação de cópias. Como se fosse uma Universidade de Cinema.

O que o levou a criar o AFA?

Era necessário. Apercebemo-nos de que não poderíamos combater Hollywood sozinhos. Não podemos viver os nossos melodramas sós. Ninguém exibia filmes artísticos, por isso montámos o nosso próprio cinema. Ninguém preservava os nossos filmes, por isso criámos um departamento. Ninguém escrevia sobre os filmes, formámos as nossas próprias publicações. Ninguém os distribuía, criámos uma distribuidora. Somos uma nação independente. Até aos anos 70 não havia qualquer apoio ao cinema avant-garde.

Num dos seus filmes, afirma que o cinema não tem 100 anos, que o cinema é e será sempre novo. Mas é possível estar sempre na vanguarda?

Sim. Quando os inimigos eliminam a primeira linha de soldados, a segunda passa a ser a linha da frente. E por aí a fora. Há sempre uma linha da frente. Quando é abatida significa que passou à História, tornou-se consensualmente aceite ou entrou na moda. Foi absorvida pela sociedade. Fala-se muito de gerações. Antes essas gerações artísticas surgiam de dez em dez anos, agora, com a vertigem tecnológica, tal pode acontecer de três em três anos.

Em muitas das suas obras filma os seus amigos. Transformou os vídeos caseiros numa forma de expressão artística?

Os filmes caseiros não são novidade. Em 1965, havia mais de seis milhões de câmaras de oito milímetros nos Estados Unidos. Muitas delas ficaram guardadas nos armários. Até a Jackie Kennedy tinha uma câmara na sua casa. Eu sei porque estive na casa deles. A Jackie foi ao armário, tirou uma gabardina e lá estava a câmara guardada no bolso. Tinha-se esquecido da máquina ali. Depois ela arrumou-a no mesmo sítio. Há cerca de dois anos, um amigo meu que é professor de Harvard, tentou saber o que é feito dessa câmara. Mas disseram-lhe que não havia câmara nenhuma. De qualquer forma, com seis milhões de câmaras, deve haver filmagens até ao fim do mundo. Eu tenho uns vídeos que alguém fez na Índia, nos anos 30, a cores e em condições perfeitas.

Filma muito, mas imagino que há momentos em que se arrepende de não estar a filmar...

Acontece a todos. A mim bastante. Muitas vezes questionam-me se não me sobrou nenhum material das filmagens que fiz com Andy Warhol. Se tudo que filmei está nos meus filmes. Aquilo passou-se de forma muito natural. Cada um de nós estava a fazer o seu trabalho. Éramos todos amigos. Fazíamos aquilo porque nos dava prazer, porque nos divertia. Eu digo, por graça, que se soubesse que haveria tanta procura teria filmado pelo menos umas dez horas. E depois vendia.


Sem comentários: