sexta-feira, 30 de outubro de 2009

E, no entanto, elas movem-se



História de uma produtora de animação portuguesa que aposta numa indústria à escala internacional. Para já, conseguiu ser seleccionada para o Fórum Cartoon, na Noruega, com a história de um rapaz de cartão

Uma espécie de desnivelamento verbal. Que nos traz o sobressalto do pasmo e da ironia. Sardinha em lata é talvez a mais poderosa imagem da quietude, da inércia, do aperto. Aí está, esse mísero e acanhado peixe, tão acomodado quanto português, enlatado, posto em sossego em azeites e óleos alimentares. E, no entanto, elas movem-se. Como Sardinha em Lata - curioso e imobilizado nome para uma produtora que faz do movimento o seu ofício.
Criada há pouco mais de dois anos, embora constituída por realizadores que trabalham há muito na área, na Sardinha em Lata, produtora de cinema de animação, aposta-se, pela primeira vez em Portugal, na internacionalização. Sardinhas que enfrentam tubarões. E até agora, com mergulhos de mar alto: Dodu, o Rapaz de Cartão, projecto de série, de 78 episódios com 5 minutos, foi seleccionado e apresentado, na sua versão piloto, este mês no Cartoon Fórum, na Noruega. Considerada uma das mais ambicionadas arenas da indústria europeia da animação, o evento é organizado pela Cartoon, uma associação sem fins lucrativos sediada em Bruxelas, que desde há 20 anos une esforços, produtores, investidores e difusores europeus para dar a conhecer as realizações dos vários países, quase sempre esmagados pelos grandes cachalotes da animação americana. Este ano foram exibidas 310 horas de animação. França apresentou 15 projectos, Espanha treze, Portugal este exemplar único, da autoria de José Miguel Ribeiro, que em 2000 venceu o Cartoon D’Or, o mais importante prémio de animação europeu com a curta A Suspeita, e esteve à beira da nomeação para os Óscares. Dedica-se, agora, a esta animação infantil, de volumes em cartão, que estará pronta daqui a 21 meses e poderá ser exibida em canais televisivos de todo o mundo.A empreitada é de grande envergadura: 390 minutos de animação, com um orçamento previsto de 6.500 euros por minuto (2 milhões e meio de euros, no total).

Levar a vida a dar vida
«Chegamos a levar um ano para fazer 15 minutos de animação», explica o realizador. E à medida que visitamos as instalações da produtora, o nome Sardinha em Lata parece ganhar mais sentido. Dezenas de animadores imobilizam-se às suas secretária para produzirem mobilizações das pequenas personagens que vão aparecendo no afiado dos seus lápis. «No fundo, do que se trata aqui é de trabalho, trabalho, trabalho...».
À sua frente, a forrar uma das paredes do estúdio, está outro dos seus projectos, ainda na fase inicial de pura paralisia. Como se fosse uma espécie de BD condensada, um story-board cinematográfico com toda a sequência fundamental desta nova obra de José Miguel Ribeiro. Chama-se Viagem a Cabo Verde e terá 15 minutos de duração. O story –board no cinema de imagem real é opcional, «em animação é obrigatório. É um instrumento de trabalho, o nosso mapa.». O filme conta as aventuras de uma personagem solitária, a calcorrear a imponderabilidade das ilhas crioulas, e que aos poucos se vai libertando das urgências e das pré-formatações citadinas. A curta assume a sua componente autobiográfica, a julgar pelos contornos da figura e também pela viagem de auto-reconhecimento que o realizador fez há tempos. A história inspira-se nessa experiência de vida e muitos dos desenhos baseiam-se naqueles que trouxe consigo no seu diário de viagem. Regra número um: «Sacudir sempre as botas antes de as calçar». A segunda coisa que a personagem aprende é a pôr de lado as impaciências e outras angústias: «Se não funciona faz restart». Lembra-se de estar a viajar numa daquelas trepidantes camionetas de Cabo-Verde, que ia apinhada de pessoas, mais ou menos como o nome da sua produtora. A certa altura vê-se uma senhora gorda à espera. O condutor pára, diz «tudo cá para fora», e volta a meter toda a gente lá dentro, senhora gorda incluída: «em Cabo Verde, há sempre lugar para mais um». A viagem surgiu desta necessidade que, às vezes, as pessoas sentem de parar. Esta personagem vai «parar», durante uns tempos, para Cabo Verde, mas aí é impossível não conhecer pessoas. Terceira regra deste errante viajante: «Não planear o dia seguinte».
Precisamente o contrário do quotidiano de um realizador de animação. De regresso aos antípodas e à vida real: os projectos têm de ser planeados ao milímetro (literalmente), com anos e anos de antecedência. E com uma rede financeira bem montada por baixo, a sustentar todas estas acrobacias animadas.

Trabalho, trabalho, trabalho...
Enquanto que em imagem real, é possível resolver a questão da rodagem numa semana, em animação falamos de uma progressão de seis segundos por dia. Num só plano, regra geral, há seis conjuntos de desenhos. Em suma, ao todo, numa curta de 15 minutos poder-se-ia alinhar os desenho numa pilha de papel que quase atingiriam a altura de um dos seus criadores: mais ou menos 1,60m... Daí a importância de estabelecer acordos, protocolos, co-produções com estúdios estrangeiros e financiamentos prévios. Participar em eventos como este do Fórum Cartoon torna-se uma lança na Europa. E são vitais os apoios que possam vir do ICA, da RTP, e da Câmara de Montemor, onde estão alojados os estúdios de animação com volumes, e se encontra em fase de finalização Desassossego. Esta curta de 20 minutos, da autoria do realizador italiano residente em Portugal, Lorenzo Degl’Innocenti, conta a história com fina trágico de um merceeiro saturado, que quer mudar de vida e de rumo. Só a parte de construção dos bonecos e dos cenários durou quatro meses. Depois entraram em cena o director de fotografia e a equipa de iluminação. A seguir, os animadores, com uma paciência infinita, movem milimetricamente as personagens e vão-se tirando fotografias, à razão de seis vezes 24 fotogramas por segundo.
«Por isso é que eu digo que fazer animação é o mesmo que investir na cortiça», continua José Miguel Ribeiro. «Se eu agora decidir comprar uns sobreiros novos, só os meus netos é que vão beneficiar disso. A animação é assim.... Apenas entra neste mundo quem tem paciência e tempo para estudar».
E o que se estuda é basicamente o movimento, desde os mais simples até aos mais complexos que são os dos animais e dos humanos. Ao contrário do que muita gente pode pensar, a animação tem muito mais a ver com movimento do que com desenho ou pintura: «A arte que mais se aproxima da animação é a música ou a dança».
Mais do que o domínio de uma tecnologia, é importante aprender «a linguagem do movimento, como quem aprende música». Porque acrescenta, José Miguel Ribeiro, «movimento é uma espécie de poesia».
Ao contrário do que acontece em Espanha ou noutros países europeus, não existe em Portugal, qualquer curso de animação. A maior parte dos cento e pouco animadores que (sobre)vivem em Portugal são auto-didactas. Apenas vão acontecendo alguns workshops esporádicos e desgarrados. José Miguel Ribeiro faz parte daquela geração que ficou «apanhada» pelos míticos programas de animação de Vasco Granja: «A animação que ele nos mostrava abriu-nos a cabeça e a capacidade de olhar com outros olhos para este cinema, superando o fácil e o imediato, dando-nos uma mais extensa cultura visual». Licenciou-se em Belas-Artes, dedicou-se à pintura e à ilustração, mas foi no programa Rua Sésamo, onde trabalhou, que se reencontrou com personagens em acção, e com o seu fascínio de infância. Trabalhou com ZEP e Abi Feijó (nomes referenciais da animação em Portugal), colaborou no Vitinho, o boneco que, nos anos 80, levava as crianças portuguesas para a cama – só que, para ele, tinha o efeito inverso: tirava-lhe o sono. Entretanto surgiu esta medalha de ouro das olimpíadas da animação na Europa, com A Suspeita (26 prémios garantiram-lhe o pódio do filme de animação português mais premiado de sempre). Em 2004, realizou a série infantil As Coisas Lá de Casa e, ainda este ano, apresentou no Indie e em Vila do Conde, Passeio de Domingo, uma outra animação de volumes, em que se reflecte sobre estes momentos de convívio familiar.

Perpétuo movimento
Além da estratégia internacional, outra característica da Sardinha em Lata é a variedade. «O que nos move é a novidade. O grande estímulo é aprender. Procuramos sempre não nos repetir e experimentar várias técnicas», comenta Nuno Beato, outro dos realizadores da produtora. Num canto do estúdio, guardam-se inúmeros fragmentos de tecido que servem para construir a série Ema & Gui (52 episódios de 7 minutos). A ilustradora Rosa Baptista uniu-se a este realizador, nesta co-produção luso-espanhola, de forma a passar as personagens e cenários para tecido, ganhando assim outro potencial de textura. Depois de digitalizados, pintados e recortados, as personagens e cenários são postos a mexer num software de animação de recortes. Mas, dizem, «o trabalho manual da pré-produção e a preocupação de qualidade retiram à animação digital a sua habitual frieza». A série, com orçamento de 700 mil euros, é indicada para crianças em idade pré-escolar e conta a história de uma menina, que tem um amigo imaginário, e viaja «para lá das nuvens», quando calça uma botas mágicas.
Uma outra técnica radicalmente diferente testou Nuno Beato na sua curta-metragem em Mi Vida em Tus Manos (7 minutos) que já se estreou no Monstra e passará também no Cinenima, Festival de Animação de Espinho, em Novembro. Para contar uma história passada nos bastidores de uma tourada, Nuno Beato usou a arte de pintura no vidro, «porque permite fazer mutações». E é justamente disto que se trata na belíssima curta de Nuno, animada primeiro em digital 3D. Depois, esteve cerca de dois meses a pintar de pé (porque assim o obrigava a logística tecnológica), imagem após imagem. Meses antes de avançar para o guião, Nuno Beato documentou-se, assistiu a touradas, viu vários vídeos sobre o assunto, pesquisou, tinha uma ideia «anti» muito radical, aprendeu a ser mais moderado. E a história evoluiu para uma relação entre um pai e um filho. Por isso, refere, é tão importante ter um guião e uma ideia de base forte e estimulante. Justamente para não desanimar: «Temos de carregar com a história durante anos. Mesmo com bons desenhos, se a ideia não for forte, não dá».
A técnica de Pedro Serrazina (autor de A Estória do Gato e da Lua, 1995) em Olhos de Farol, outra das curtas da Sardinha em Lata em fase de produção, ainda é mais complexa: envolve imagem real e pintura. Conta a história de uma menina que vive isolada com o pai, numa ilha de um farol, e os seus dias iluminam-se com os objectos naufragados que o mar lhes traz. Ao contrário do pai, que tem uma relação muito negativa com esses objectos, porque o ligam ao mundo e a uma memória que o atormenta.
Quem disse que sardinhas em lata não se moviam?

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