quinta-feira, 2 de julho de 2009

Uma família em contramão

Ursula Meier, a premiada e estreante realizadora suíça de Home, uma espécie de road movie ao contrário, mas que também é um filme de amor, mas que também é um filme de guerra... em discurso directo no FINAL CUT


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FINAL CUT> Sabemos que, no cinema (e nas artes em geral), é corrente aproveitar-se toda a carga metafórica de alguns elementos, como as pontes, a água, a lua, etc… A Ursula conseguiu encontrar uma metáfora absolutamente poderosa numa auto-estrada. Porquê utilizar uma auto-estrada para contar a história de uma família ?
URSULA MEIER- Home é antes de tudo uma fábula contemporânea sobre a família. A abertura da auto-estrada, metáfora do mundo que escorre por entre as janelas dessa família – um mundo barulhento, perigoso, poluente, ameaçador – age como um lobo no seio familiar e revela as suas disfunções e maleitas profundas. A vida, a poucos metros das viaturas, dos camiões, das caravanas, das motos, - cujo o número não cessa de aumentar dia após dia para atingir o seu climax nos engarrafamentos de partida para férias, e num barulho cada vez mais ensurdecedor - torna-se, pouco a pouco, insustentável para essa famíla.
E cada membro da família tenta gerir a situação com os seus próprios meios. Para manter a unidade e a coesão familiar, cada personagem conserva os seus sofrimentos para si mesmo, e ‘desce’ ao seus interiores, às suas zonas turvas, afundando-se na sua própria loucura. Como a jovem adolescente Marion que volta a sua inteligência contra si própria, convencida de que as suas borbulhas, não mais do que mero acne, são devidas à poluição da auto-estrada. Através do comportamento cada vez mais louco das personagens, vamo-nos apercebendo que o perigo talvez não venha da auto-estrada, do mundo exterior, mas do interior da própria família…

O seu filme tem vários níveis de leitura. Trata-se de uma família que se fecha, que diz não, que se condena a si própria a uma prisão domiciliária. Podemos dizer que esta é uma história de resistência ?
É uma história de resistência, mas sobretudo e, antes de mais, é uma história de amor. Esta família ama-se, talvez mesmo demasiado, o que a torna numa família com tendência para a fusão, e que vai literalmente fundir-se em face do perigo representado pela abertura da auto-estrada. Como na cena em que os membros da família dormem todos juntos, os corpos encaixados uns nos outros, dentro do único quarto que dá para o lado dos campos e que é o mais silencioso.
Mas é sobretudo a mãe, interpretada por Isabelle Huppert, que procura essa felicidade familiar, e esse amor que dá energia ao resto da família e, em particular ao pai, interpretado por Oliver Gourmet, de resistir face ao agressor. Aquela mãe, incapaz de abandonar o seu espaço, tenta provar aos outros que não só é possível continuar a viver naquela casa, como isso até pode ser divertido e fora do vulgar. Daí essas cenas de comédia, em que a mãe lança o lanche por cima da auto-estrada aos filhos, bloqueados do outro lado das vias. Essa mãe pensa que eles vão ser mais fortes que a auto-estrada, que o amor uns pelos outros vai ser mais forte do que o mundo. Essa defesa familiar e essa fusão crescente dá lugar a estranhos momentos de felicidade, graças aos quais a família encontra forças para enfrentar o mundo hostil. Mas inexoravelmente o seu pequeno canto de paraíso transforma-se, dia após dia, num verdadeiro inferno… Tinha vontade que as personagens fossem mesmo até ao fim, até que não lhes restasse escapatória, que elas tocassem o fundo, para então encontrar forças para escapar…

Antes da abertura da auto-estrada, esta família parece estar assente num ponto de equilíbrio, mas mesmo assim não parece uma família normal… Porque é que escolheu o WC como ponto de reunião familiar ?
Essa família vive afastada do mundo para encontrar um equilíbrio que visivelmente tinha perdido. No seio da família reina um ambiente jovial, mesmo que tenha adoptado este estilo de vida longe do mundo. Esse sentimento de isolamento vai tornar-se mais e mais perceptível e evidente, com a entrada em funcionamento da auto-estrada, que não faz mais do que catalisar e colocar em evidência uma situação que já existia. Assim que o mundo os encurrala, esse equilíbrio revela-se bastante frágil.
As casas de banho, assim como as cozinhas, são lugares importantes nas famílias. É aí que as coisas mais importantes se dizem, certamente por serem locais íntimos. A casa de banho é o espaço do corpo, e é, para mim, o sítio ideal onde eu posso mostrar o amor entre os membros de uma família com esta tendência para a fusão. É aliás, também o local onde o casal se reconcilia, depois de uma violenta discussão.

A família não abdica do seu espaço, mas também não abdica do direito de fazer o seu próprio ruído. No seu filme, o som está muito bem trabalhado… Sente-se o mundo invasor através do barulho…
Antes de «ver» este filme, eu «ouvi-o». Ouvi o barulho contínuo dos carros e dos camiões a passar constantemente na auto-estrada. Um barulho, cada vez mais denso que atinge o seu climax , mas que depois diminui, pouco a pouco, à medida do emparedamento, dando lugar a um silêncio opressivo e angustiante, durante o qual, os próprios ruídos dos membros da família se tornam tão insuportáveis para eles como o barulho da auto-estrada. .. Como se a banda sonora do filme e a sua curvatura fosse não somente a musica do filme mais também a sua estrutura e o seu movimento. Ao longo do filme, o ruído da auto-estrada torna-se, a pouco e pouco, a matéria do filme de uma forma orgânica. Esse barulho ininterrupto vai começar a corroer muito levemente o interior das personagens. Noutra escala, essa experiência torna-se também a mesma do espectador que faz, através das personagens, a experiência quase física dessa vida nas bermas da auto-estrada. Eu mesma escrevi este filme, escutando diferentes bandas sonoras com diferentes densidades de tráfego, conforme a fase em que me encontrava na escrita do argumento. Gravei um CD com diferentes faixas: tráfico pouco intenso, tráfego intenso, tráfego muito muito intenso... Tornou-se, por momentos, uma escrita esgotante mais eu tinha mesmo necessidade de me colocar no lugar das personagens para escrever.

Porquê a opção das cores contrastantes e dos figurinos também contrastantes, sobretudo os da Isabelle Hupert, que por vezes têm um estilo marcadamente anos 50?
No início do filme, a imagem é muito colorida (o verde da relva, o azul do céu, o fato de banho e a toalha colorida da Judith), mas depois, à medida que a família se vai retirando para o interior da sua casa e se começa a emparedar, a imagem torna-se monocromática, quase a preto e branco. Há cada vez menos luz solar, esta é substituída pela luz artificial dos néons que Michel instala por toda a casa. Então, passa a haver, entre o som e a imagem um efeito de vasos comunicantes: quanto mais há silêncio na casa menos há luminosidade e espaço por causa das camadas e camadas de tijolos colocadas por Michel. Eu e a directora de fotografia, Agnés Godard, trabalhámos com base em fotografias. Eu andava fascinada pelo trabalho fotográfico de Jeff Wall, em particular pela foto Insónia, onde se vê um homem que dorme sobre a mesa da cozinha. O decorador acabou por construir uma cozinha igual à da foto, que corresponde a uma cozinha dos anos 50. «Home» é antes de tudo uma fábula, e eu não tinha vontade de situar nem de datar o filme. É uma filme contemporâneo, que se poderia passar nos anos 80, e poderia ser localizado em França, na Bélgica, na Suiça, ou na Alemanha… Pouco importa. É essa mistura de épocas que me interessa. Quanto aos figurinos da personagem de Isabelle Huppert surgiram de uma vontade de que cada roupa contradissesse a precedente: numa cena ela está vestida como uma «dona de casa», na cena seguinte tem um visual mais rock, noutro mais adolescente… Foi uma forma de criar um enigma em redor das personagens, sobre as quais não sabemos grande coisa, nem o seu passado, nem em que trabalham… Ainda que o filme se passe no campo, é interessante vesti-los como citadinos, pô-los de sapatos de salto alto para atravessar a auto-estrada. É uma maneira de fazer ver ao espectador que esta família vive afastada do mundo, não por amor ao campo mas para encontrar um certo equilíbrio e uma felicidade perdida.

No filme, a filha mais velha fecha-se no seu mundo, como uma concha, mas ela é a primeira a escapar, antes de toda a família também se fechar como uma concha tumular….
Judith protege-se desta família de fusão com a sua música Heavy Metal, que lhe serve de filtro entre ela e o mundo, um filtro sonoro, mas que funciona às mil maravilhas, porque a sua família deixa-a em paz. Judith é uma personagem imóvel, limita-se a ficar deitada no jardim a apanhar banhos de sol e a cumprir um número mínimo de tarefas. Eu disse à actriz que interpretou essa personagem que ela tinha qualquer coisa de À Espera de Godot, de Samuel Beckett. O seu comportamento desajustado e doentio, criado desde o princípio do filme, não é mais do que, na verdade, o primeiro sintoma visível da disfunção familiar. Com efeito, ninguém lhe diz: «Mexe esse rabo, vai procurar trabalho! Põe a música mais baixo!».
Ela transforma-se voluntariamente num objecto, num legume de jardim mas não deixa de pensar. Judith é uma personagem misteriosa, discreta, mas que é, ao mesmo tempo, objecto dos olhares de todos: dos membros da sua família, mas também dos condutores que desfilam à sua frente na auto-estrada. Judith, na procura de um «algures», tem necessidade desse movimento incessante do fluxo da auto-estrada, que alimenta os seus sonhos e representa a partida, a sua, num futuro próximo. Durante os engarrafamentos, Judith está completamente «absorvida» pelo fluxo das viaturas. A sua fuga imprevista e surpreendente para o espectador não é menos longamente reflectida. É ela, aliás, que vai salvar o gato, libertando-o da sua corda.

Podemos interpretar este filme como uma metáfora de certos enclaves territoriais, como ilhas rodeadas de outras nações poderosas e globalizantes? Como a Palestina, ou como o seu próprio país, a Suíça?
Justamente. Esta família vive numa «quase ilha», que quando a auto-estrada abre se torna literalmente numa ilha. Ao escrever o guião, o meu produtor fez-me ver que este filme fala tremendamente da Suiça, do seu enclausuramento (basta pensar nos abrigos anti-nucleares suíços). Isso nunca foi consciente da minha parte, até que essa reflexão me surgiu. Assim que a auto-estrada se abre, ela torna-se numa fonteira intransponível entre uma família e o mundo. O filme torna-se pouco a pouco um filme de guerra: as personagens compram provisões, atravessam a auto-estrada por um túnel, protegem-se contra os efeitos da poluição sonora… É engraçado que faça essa menção à Palestina, porque eu vi um magnífico documentário sobre a construção do muro entre a Palestina e Israel chamado «Mur», de Simone Bitton que me influenciou fortemente na escrita deste filme.

Como é que nós podemos compreender esta ligação da família ao seu espaço? Será que podemos ter um ponto de vista optimista, porque é, afinal, possível criar raízes na infertilidade do alcatrão?
Este enraizamento ao lugar está totalmente ligado à personagem da mãe que é o ponto vital desta família. Ela é uma mulher frágil, que não é verdadeiramente uma mãe. Ela jamais larga a sua casa, excepto para esperar os seus filhos à chegada do autocarro. Não sabemos nada do passado desta família, e muito menos, em particular, desta mulher que deve ter sido difícil. Os membros da família adaptaram-se à fragilidade desta mulher que se vai revelar ao longo do filme. Sente-se que, se esta família vive nesse estranho sítio, retirada do mundo, deve ser por causa dela… E que se a família não se vai embora logo que a auto-estrada abre é também por causa dela, que, como uma planta, não pode ser transplantada… Esta família criou literalmente raízes neste asfalto que os vai engolir totalmente…

No fim do filme, mudamos radicalmente de ponto de vista. Deixamos de ter o ponto de vista da família que avista a auto-estrada, passamos para um travelling final, com aquilo que temos por hábito ver, quando viajamos de carro pela auto-estrada. Finalmente, o movimento… Parece que só no final do filme o road movie poder começar …
A singularidade deste drama familiar reside no facto de ela viver a poucos metros dos milhares de pessoas que transitam na auto-estrada, não se mantendo ao abrigo dos seus olhares. Reciprocamente, os automobilistas são para esta família considerados como anónimos. O mundo da auto-estrada e o mundo desta família permanecem mundos paralelos, que jamais interagem. A família limita-se a receber os fragmentos dos que desfilam diante dela: os seus apelos, os seus sinais, o seu lixo, os seus dejectos, a «rádio-autoroute», uma rádio destinada unicamente a esse mundo, o mundo em movimento… À parte do último plano do filme, a câmara está sempre no ponto de vista da família, permitindo ao espectador viver essa situação com as personagens e entrar, pouco a pouco, dentro da lógica de cada um. A auto-estrada, tal como um rio contínuo, revela-se como uma espécie de ecrã, onde cada personagem pode projectar as suas próprias angústias e neuroses…
Ritmado pelo movimento incessante do fluxo e refluxo dos carros e camiões na auto-estrada, Home não é um road movie mas a sua imagem inversa e negativa. Há imenso movimento em Home mas nunca se viaja para lado nenhum. A viagem é para os outros, para aqueles que desfilam constantemente aos olhos da família. Para esta, a vida não é on the road, mas à beira da estrada. Home é uma espécie de expedição sem deslocação. É uma viagem interior, uma viagem mental. É somente no fim do filme que o road movie pode começar…


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