terça-feira, 14 de julho de 2009

O lado oculto da luta

Margarida Leitão, a realizadora de Matar o Tempo, um dos dois únicos documentários presentes na Competição Nacional de Vila do Conde,em entrevista ao FINAL CUT




FINAL CUT: Como foi o processo de aproximação a estes operários, e aos bastidores da luta, até a câmara conquistar esse estatuto de quase invisibilidade?
MARGARIDA LEITÃO: Curiosamente foi através de uma entrevista na rádio que entrei em contacto com a realidade vivida pelos trabalhadores dispensados da Pereira da Costa. Estava-se em 2007 e já se começava a ouvir falar da ameaça que pairava sobre trabalhadores de várias empresas, mas a crise ainda não era mais que um rumor. As notícias sobre o fecho de fábricas ainda deixavam indiferente a opinião pública. Ao saber da existência desta situação às portas de Lisboa, junto ao bairro em que cresci, Benfica, não pude deixar de lá ir e presenciar essa realidade.
O processo de aproximação desenrolou-se de uma forma natural. Primeiro visitei-os sem a presença da câmara. Foi a ocasião para me apresentar e ter conversas sobre como se desenrolou a situação até àquele momento presente. Passado um tempo, comecei a levar a câmara nestas visitas e começo a captar instantes desta longa espera, esta vivência quotidiana diferente que estes homens foram obrigados a adoptar. Acostumados a dirigirem-se todos os dias àquela empresa para trabalhar, agora é-lhes negado o acesso.
O meu processo de trabalho passa por estar junto destes ex-trabalhadores, numa presença constante, embora espaçada no tempo. Filmei-os durante vários dias num período de tempo compreendido entre Julho e Setembro de 2007.
Desde o primeiro momento senti-me aceite naquela comunidade. Creio que eles sentiam necessidade de ter uma testemunha da sua luta. Alguém que os acompanhasse na sua permanência e resistência no local de onde tinham sido expulsos.
Rapidamente, a câmara adquire, entre eles, um estatuto de quase invisibilidade. Mas nunca é invisível. Está lá com eles. Partilha com eles os momentos de revolta, de intimidade do quotidiano comum, mas mantém-se à distância. É uma presença discreta, não ausente que procura a "justa" distância para os retratar.
O facto do espaço da tenda ser muito reduzido colocava problemas de ordem prática para filmar. A maior parte do material do filme foi captado por mim e mais uma pessoa, não havia espaço para grande aparato e/ou equipa. Isso também levou a que a distância" justa" mantida se traduzisse em termos físicos numa grande proximidade física .

No seu último documentário, Muitos Dias Tem o Mês, uma longa que passou no Indie, debruçou-se sobre o endividamento das famílias, agora regressa a um tema social, noutra perspectiva menos passiva. Estamos nos bastidores de uma luta de trabalhadores de uma fábrica, com a bandeira da CGTP em fundo, mas curiosamente pouco ou nada se fala de política...
Sempre me interessaram nos meus filmes, ficção e documentário, abordar situações limite em que pessoas são obrigadas a reagir a uma realidade nova que os ultrapassa.
Apesar do pano de fundo de "Matar o Tempo" ser uma luta laboral, em que trabalhadores que foram dispensados se concentram dia e noite, há meses, à porta da empresa, numa vigília de protesto, o que me motivou foi acompanhar a sua "nova forma de vida" com que se viram, de uma forma drástica e dramática, confrontados. Um acontecimento exterior e que não controlam obrigou-os a reagir e a tomar uma atitude inesperada nas suas vidas.
Os seus dias são passados em frente ao local onde trabalharam durante 20, 30 anos e onde deixaram, como nas palavras de um dos operários, " mocidade, suor e saúde ". Mas estes homens não trabalham. Esperam. Dias transformam-se em meses e anos, numa espera, sem fim à vista, por uma decisão do tribunal que lhes faça valer os seus direitos. É uma longa espera transformada em resistência.
Mais do que a situação política que é intrínseca a esta realidade, interessou-me focar estes rostos humanos marcados por uma vida de trabalho, que lhes agora é negado. Trata-se de homens de meia idade que estão no limbo. Muito jovens para irem para a reforma e muito velhos para encontrarem um novo trabalho. São homens que tem a vida em suspenso, em que só lhes resta encontrar formas de "matar o tempo".

No seu filme, o ângulo está fechado nos trabalhadores, da fábrica aparece apenas uma fachada e vagamente um portão... Não sentiu a necessidade de dar também o outro lado?
"Matar o tempo" reflecte sobre um grupo de homens, que um dia foi trabalhar e lhes foi negado o acesso ao seu local de trabalho. Foi esse acontecimento inesperado e dramático que despoletou a vivência retratada no filme. Foi o facto de terem sido impedidos de entrar no portões, e serem obrigados a ficar no exterior, que precipitou e marcou o desenrolar dos acontecimentos. São homens que foram expulsos e ficaram de fora, da empresa e da sociedade. É essa condição que " Matar o Tempo " retrata. Não me interessou portanto o outro lado da questão, ou, neste caso, o outro lado do portão. Essa condição de "estar-se de fora" e de ser "impedido de entrar" foi adoptada pela câmara. Tal como eles, a câmara vê a empresa vista de fora. Queria abordar a realidade de quem foi excluído, e tenta lidar com isso no seu quotidiano. Com a câmara procurei testemunhar como reagem ao facto não poderem mais entrar no local onde passaram grande parte da sua vida adulta.

Como surgiu aquela cena incrível , e que marca todo o filme, em que um velho operário lê uma revista do coração?
Durante vários dias desloquei-me aos portões daquela empresa e àquela tenda, passando tempo com aqueles homens e captando momentos banais do seu dia a dia, marcado por uma longa espera por uma decisão do tribunal que restaurasse alguma normalidade a vidas viradas do avesso.
A tenda que construíram para apoiar nesta longa vigília de protesto tornou-se na sua segunda casa. Lá partilham um passado comum no trabalho, histórias presentes de uma vida em suspenso e as incertezas do futuro. Revelam suas alegrias e tristezas no meio de jogos, refeições e silêncios. O momento em que um homem folheia de forma exaustiva e compenetrada uma revista de coração, fazem parte do acaso que permeia o fazer-se documentários, sendo um desses momentos únicos de intimidade de uma realidade quotidiana de quem "mata o tempo" enquanto espera. A presença da câmara testemunhou esta situação aparentemente insólita. É grande o contraste criado pelo olhar através de umas lentes grossas, para um mundo glamouroso de estrelas de cinema numa revista cor de rosa por um velho operário desempregado, tornando-se numa cena tocante.

No final, há um vendaval reaccionário que quase lhes desmonta a barraca. É uma cena cheia de simbolismo, porque a escolheu para encerrar o filme?
A cena do vendaval foi um momento muito especial da filmagens deste documentário, "uma espécie de milagre". Naquele dia eu já tinha o material de filmar todo arrumado no carro e preparava-me para me despedir dos trabalhadores quando aquele vento forte começa-se a levantar e a pôr a integridade da tenda improvisada em causa. Rapidamente voltámos a montar o material e recomeçámos a filmar a luta daqueles homens para manter aquela tenda rudimentar de pé.
A tenda além de servir de uma segunda casa, o local de apoio onde muitos daqueles homens passam grande parte dos seus dias e noites na sua vigília de protesto (para alguns deles será mesmo uma primeira casa dado o tempo aí passado ser mais substancial), tem um cariz simbólico muito forte. É o símbolo da luta que aqueles homens há quase um ano mantém dia e noite .
É uma estrutura frágil cheia de remendos, feita pelas suas mãos,para os abrigar e proteger neste momento difícil das suas vidas. A tenda estar de pé representa que a luta continua. Apesar do desgaste provocado pelo passar do tempo sem que nada aconteça, a tenda mantém-se e com ela aqueles homens encontram-se ainda unidos, e contra tudo e contra todos, resistem.
Um acaso de natureza através de um vento forte põe em causa a construção daquela tenda de lona, feita por ex-trabalhadores da construção civil. Tornando aquele num momento único presenciado pela câmara. A luta que desenvolvem contra a natureza, que através do vento forte procura deitar abaixo aquela estrutura periclitante e com ela a capacidade daqueles resistirem naquela luta incessante, é comovente. Há que tapar os seus buracos e resistir. Enquanto a tenda se mantiver de pé, a luta continuará, por mais um dia...

Sem comentários: