sexta-feira, 17 de julho de 2009

Felizmente há luar





Com ou sem força da gravidade, desde os primórdios que o cinema anda na órbita do satélite mais metafórico da galáxia

Jorge Luís Borges dizia que por mais que todos os poetas do mundo se esforçassem, por mais que todos escritores tentassem, nunca se arranjaria metáfora mais poderosa para definir a Lua do que a própria Lua. Não há sinónimo mais eloquente, nem comparações que superem, nem adjectivo que beneficiem. A palavra «lua» já contem em si algo de superlativamente poético. De inultrapassável. Nem à velocidade da luz, nem com motores de propulsão. Por mais que a arte o eleve alguns quilómetros acima do solo, o homem nunca conseguirá chegar à Lua.

O mais próximo que esteve foi em 1801, quando um compositor alemão meio surdo produziu uma obra para piano que deixou só numerada. Muitos anos depois da sua morte, um crítico chamou-lhe Moonlight Sonata. De facto, é bonita de mais para ser terrena.

Logo às primeiras notas desta peça de Beethoven nos sentimos impregnados de nostalgia lunar.

Outra vez em que o homem esteve perto, muito perto, do satélite branco, foi em 1968, quando Kubrik apresentou o seu primeiro minuto e meio do filme 2001, Odisseia no Espaço. Outras notas (de Richard Strauss) que valem mais do que tantos adjectivos, no célebre alinhamento astral do genérico. A Lua que descobre a Terra. E a Terra a descobrir o Sol. Um eclipse ao contrário, a antecipar as quase três horas seguintes de um filme que é antes uma espécie de paisagem musical. Depois do exercício de perfeccionismo cerebral de Kubrick, já ninguém voltou a olhar para a Lua da mesma maneira. Apesar de o Homem a ter espezinhado com pegadas e perfurado com bandeiras no ano seguinte. Da Terra vê-se a Lua. Depois de 2001, Odisseia no Espaço, inverteu-se filosoficamente a perspectiva: da Lua é que se vê a Terra, desse miradouro privilegiado, de onde nos podem observar, tranquilamente, desde os princípios dos tempos. No filme, um monólito aparece a uns Homo ainda não Sapiens. Faz-se a mais longa elipse da história do cinema. O monólito, essa emanação de uma inteligência alienígena, volta a aparecer, em 2001, numa base lunar. Os mesmos Homo, um mais bocadinho mais Sapiens, agora já não cobertos de pelos mas de fatos de astronautas, têm a mesma reacção dos seus símiescos antepassados. Cercam-no, eivados de temor e curiosidade, e tocam-lhe...

A primeira expedição cinematográfica ao satélite aconteceu no princípio do século. Naquele que é considerado o primeiro filme de ficção científica, A Viagem à Lua (1902), George Méliès, uma espécie de ilusionista francês, mostra literalmente uma cara de lua cheia, do tipo queijo amanteigado, e um foguetão a furar-lhe um olho. Lá de dentro saem uma série de sábios, completamente alheios à ausência de oxigénio e de gravidade. E até fazem uma soneca, quando anoitece, au «claire de la Terre». No «dia» seguinte, prosseguem neste cenário de Alice, com cogumelos gigantes, até terem uns encontros imediatos com gnomos lunares, pouco amistosos e saltitantes. A diplomacia também não abunda nestes primeiros austronautas a pisar solo da Lua, e a aventura termina em 14 minutos, de volta ao planeta Terra.

Já a cores, mas com o mesmo grau de ingenuidade, Nathan Juran filmou outra alunagem desastrada, a adaptação do clássico de H.G. Wells Os Primeiros Homens na Lua (1964). Um visual vitoriano e os efeitos especiais do lendário Ray Harryhausen salvam-no com algum encanto retro. Munidos de escafandros e botas de mergulhador, três personagens alcançam uma Lua muito pitoresca e travam conhecimento com os selenitas, uns insectos pacíficos e civilizados mas completamente indefesos ao humano vírus da gripe (um tema caro a Wells recuperado de A Guerra dos Mundos).

O interesse do cinema pelas viagens à Lua decaiu drasticamente à medida que o homem nela caminhava, nas sucessivas incursões pós-69 – com a significativa excepção do filme de Ron Howard, Apollo 13 (1995), sobre a célebre missão falhada, e do ainda por estrear Moon (2009), de Duncan Jones, um thriller emocional futurista passado numa base lunar.

Mesmo perdendo o estatuto de aeroporto espacial, a Lua conservou a sua alta reputação inspiradora. Impusionadora de gestações e marés, todo o potencial metafórico lunar foi explorado pelo cinema. Nos filmes de vampiros e lobisomens tornou-se imagem cliché. Lua cheia, de preferência. Equívoca, porque deixa se deixa ver e oculta ao mesmo tempo, privada de luz própria, pontificadora das trevas, contraponto solar, entidade mutante, que atravessa vária fases, que sempre se renova, morre, quase que desaparece e torna a renascer...


Desde Murnau (Nosferatu, 1922) que aparece nos planos de filmes dessas criaturas sugadoras de sangue. Premonição de morte, destas criaturas sedentas de sangue humano, que a saúdam com uivos reverenciais. Em Bad Moon (Um Lobisomem Americano em Londres, de Eric Red, 1996), os ingleses do pub Cordeiro Massacrado avisam os turistas mochileiros: «Cuidado com a Lua!»

Mas mais interessante é quando a Lua nem se vê, apenas se pressente. O seus reflexos, a sua luz pálida, indirecta e passiva. A sua ambivalência - porque anuncia o escuro e os medos, mas apesar de tudo há luz ao fundo da noite... Como em A Sombra do Caçador (1995), obra-prima de Charles Laughton, quando as duas crianças fogem no bote, se deixam ir na correnteza prateada de luar e são avistadas pelos seres da noite, atemorizantes como uma canção infantil. Que se vão tornando mais benignos com o amanhecer: a aranha, o sapo, a coruja, a tartaruga, os coelhos, as ovelhas... A dada altura, os miúdos refugiam-se no celeiro. O rapaz lança um olhar para a Lua. Ela continua lá, fina e equívoca, como um sorriso trocista. Daí a nada, surge o medonho pregador (Robert Mitchum), a cavalo, na contra-luz do horizonte. Depois há outra das mais célebres «cenas de Lua» da história do cinema, também em contra-luz, quando o ET (de Steven Spielberg) eleva o miúdo e a bicicleta, e torna possíveis os voos e os sonhos de Peter Pan. E também há a premiada curta de animação portuguesa de Pedro Serrazina (Estória do Gato e da Lua, 1994), que fala desta cumplicidade felina de fusão, como um poema visual. E também há o rosto de Audrey Hepburn, iluminado por um luar de estúdio, a cantar Moon River (Breakfast at Tiffany’s, de Blake Edwards, 1961). Bonito de mais para ser terreno. Chamemos-lhe apenas o lado lunar.

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