sábado, 2 de maio de 2009

A pureza perigosa do amor

Mário Barroso, realizador de Um Amor de Perdição


É o romance português mais adaptado ao cinema. Que tem de especial Amor de Perdição?
É um dos raros romances em que a acção é seca e imediata. Mas, no meu caso, não foi uma ideia espontânea, ao contrário do que aconteceu com O Milagre Segundo Salomé, que era um projecto com mais de 20 anos. Logo no início dos anos 80, tentei comprar os direitos do livro do Rodrigues Miguéis, só que era um balúrdio.

Amores de Perdição houve e haverá sempre, mas a história do Camilo tem alguns contextos próprios do século XIX difíceis de transpor para os nossos dias…
Sim, mas há qualquer coisa… Este Simão conflituoso, que onde toca a terra seca, com uma grande revolta …. Existe desde sempre. Os putos de 16 anos são assim… Há um radicalismo, uma exigência amorosa, com grandes dramas e até suicídios. Não é de agora, sempre aconteceu. É uma história relativamente universal. Mas há aspectos menos credíveis: no Camilo eles não se vêem, a não ser à janela, têm um único contacto físico e depois passa-se tudo através de cartas. É uma relação absolutamente platónica. Mesmo do ponto de vista da autoridade familiar é difícil aceitar um pai assim. E depois há a questão tecnológica. Era preciso inventar qualquer coisa. A história de amor, no filme, não é tão importante quanto isso. No projecto inicial, a Teresa nem se via, e no final poder-se-ia perguntar se ela realmente existiu. Depois comecei a pensar que era demasiada voz off. E achei que a Teresa poderia ser uma espécie de aparição. Desse ponto de vista está mais ou menos credível. Por erro de direcção de fotografia, vê-se melhor do que esperava. Mas enfim…

Mas não há nenhum plano frontal…
Apenas um, que é o da virgem, quando ele morre, a câmara sobe e ela aparece. A ideia é que aquele tipo está apaixonado pela própria ideia do amor. A pureza perigosa do amor, que pode levar a tudo, até ao suicídio e ao assassinato.

Voltando à questão tecnológica: as cartas são substituídas pelo telemóvel e pelas notas que a Mariana tira das conversas…
Isso existe no livro. Não é muito credível, mesmo na obra do Camilo, que a Mariana, filha de ferrador, transmitisse ao Simão, com grande precisão, o que a Teresa lhe teria dito. É credível literariamente, mas não numa personagem que tem tendência a não se saber exprimir. Na verdade, através da Teresa, transmite-se a grande relação sensual entre a Mariana e o Simão.

Essa relação existe, mas aqui também há uma tensão sexual em dois pares com insinuações incestuosas….
Não sei fazer nada que não tenha uma conotação erótica. A primeira leitura que fiz d’O Milagre Segundo Salomé era que se tratava de uma mulher frígida, e isso bloqueou-me, porque não me sinto capaz de retratar a frigidez. Até que arranjei maneira de dar a volta àquilo. Aqui precisava de qualquer coisa de sensual. O lado incestuoso entre a mãe e o filho, que talvez pudesse ser menos evidente, é sobretudo terno. Provoca uma certa perturbação entre eles, mas não é propriamente uma relação sexual. Entre o irmão e o irmã até pensei fazer a coisa mais forte. Inicialmente, a Rita que tinha na minha cabeça era mais Lolita. Mas quando fiz o casting percebi que não se ajustava. Achei que não encontraria nenhuma actriz suficientemente subtil para fazer uma coisa mais de cumplicidade e de brincadeira.

Toda essa tensão sexual compensa a ausência de sensualidade na relação entre Simão e Teresa.
Isso parece-me evidente também no Camilo. A grande relação de desejo é entre a Mariana e o Simão. A relação entre a Teresa e o Simão é destruidora, de uma destruição sadomasoquista. Ele quase que a incita ao suicídio. É tudo muito platónico. Ele diz que a vai buscar, mas isso nunca acontece. A única vez em que tenta fazer alguma coisa, acaba por assassinar o primo. A Teresa não se devia ver, mas acaba por ser a Ana Moreira. Nunca tal me tinha passado pela cabeça, até porque a imaginava com dezasseis anos. Mas quando a vi, pensei, «porque não?» Achei-a tão frágil, magra, quase evanescente. Foi uma boa ideia. Seria pretensioso ela nunca aparecer.

O início do filme é quase chocante…
Não estava no argumento. E nunca falei dele a ninguém. O filme começava com Romeu e Julieta a ser encenado na escola. Mas dei a palavra de honra ao Paulo Branco que não iria ficar assim. Só fiz uma asneira, relacionada com um problema que tive na rodagem. Na verdade, não teria a necessidade do primeiro casal. Devia ter posto só os dois miúdos, ficaria mais bonito.

Teve que fazer muitas cedências neste filme?
Fiz mais de 130 filmes como director de fotografia. No plateau vêem-se quase sempre pessoas histéricas, irritadas ou nervosas, pondo as culpas em cima do mundo inteiro, apesar de terem tudo, uma actriz magnífica e um decor soberbo. Estão a arranjar uma merda de todo o tamanho porque a garrafa é verde e queriam que fosse amarela. E apercebemo-nos da angústia, do stress e de uma não apetência pela imagem. Na televisão, é frequente começarem uma sequência por um grande plano da colher, e depois o açúcar, a chávena, e quando se vai filmar a representação dos actores não há tempo. Parece que há um medo de filmar, de decidir. Mas isso é o que mais prazer me dá. Enquadrar, filmar.

No filme tem um pequeno papel, faz de pai da Teresa. Porquê?
Não sei bem… Como é um filme cheio de insinuações incestuosas quis ser o pai da Ana Moreira, para pôr um pouco de ordem na casa.

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