quarta-feira, 29 de abril de 2009

‘A submissão é uma ignomínia’

Um Amor de Perdição, de Mário Barroso







O que o filme de Mário Barroso tem de especial não é só a excelência da fotografia, do casting e da direcção de actores. É também a forma inteligente de transpor a intrasponível obra de Camilo para a actualidade. E isso não se faz apenas transformando o ferrador João da Cruz em garagista, ou as missivas que pingavam melodramatismo e romantismo do século XIX em telemóveis… Isso consegue-se fazendo um copy do espírito do livro. Depois um drag and drop em cima da actualidade, e finalmente um paste. Parece fácil, não é?


Nas margens de todas as literaturas do mundo há-de lá estar o tal imprecador das ousadias, invectivador das transgressões, a lançar avisos e apelos, que regressem as naus, que não, não vão por aí, que não se naveguem nas linhas intocáveis dos clássicos.

Por ali, ao sabor das vagas, agarrados a insufláveis de borracha, hão-de estar estes seres flutuantes, temerários, que se deixam ir com a corrente, e nem pensar em remar contra a maré, que se sentem afundados ao peso de um livro como Amor de Perdição. Pensam que naufragam de tédio e erudição, ainda por cima, vinda de autor solene, vagamente assomado nas aulas, de ar severo, humores funestos, lunetas e fartos bigodes à século XIX.

Os arautos da ortodoxia literária bramam, os seres flutuantes alardeiam, o filme de Mário Barroso (estreia-se dia 23), «livremente inspirado» na obra-prima de Camilo Castelo Branco, passa...

E passa ao largo de polémicas, e discussões retóricas, que o realizador e director de fotografia (esta é a sua segunda longa), que há 42 anos vive em Paris, e já participou em 138 filmes, não gosta de se posicionar nestas contendas, entre o que é cinema comercial e o que é cinema de autor. Prefere, diz, deixar isso para os teóricos, críticos e pensadores do cinema. «Embora sem pretender ser pretensioso, nem justificá-lo intelectualmente, diria que a procura da diferença não é uma má coisa. Só isso preservará o cinema. Se eu fosse pelo caminho do cinema globalizado, há muitos que o fazem melhor do que eu». Depois de Milagre Segundo Salomé (2004), baseado no livro de José Rodrigues Miguéis, surgiu-lhe a hipótese de adaptar outro autor português. Pensou de imediato em Amor de Perdição. E não foi uma decisão extravagante. Este é o clássico português com mais adaptações cinematográficas e teatrais. Não foi só por ser a versão do romantismo português de Romeu e Julieta. Ou um paradigma do amor total, em toda a sua intensidade e tragédia. Ou «a mais dilacerante novela passional da literatura portuguesa» (Vasco Graça Moura). Ou «um poema de revolta, obstinação e desespero» (Jacinto Prado Coelho). O próprio Camilo, prevendo «o riso realista perante aljofaradas lágrimas românticas» chamava-lhe «romance declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo». Embora com a «boçal inocência de não devassar alcovas»: podia ser lido pelas senhoras sem se ruborizarem.

A verdade é que Amor de Perdição (e esta é uma das explicação para atracção que exerce sobre os cineastas) é uma espécie de romance perfeito, com a linha da narrativa aristotelicamente desenhada, mantendo a sequência de acontecimentos encadeados, numa unidade de tom, ritmo e estrutura. De escrita certeira e musculada, sem adiposidades nem redundâncias celulíticas . A caracterização das personagens é feita em duas penadas (esta é uma expressão cronologicamente adequada), e segue-se a uma velocidade torrencial para o que interessa: a acção, as altas cenas de pancadaria, bordoada da grossa, os pais tiranos, o amor levado à hipérbole, as reclusões conventuais, as freiras viciosas, as mortes à queima-roupa... Ainda os irmãos Lumiére não eram sequer embriões, já Camilo escrevia em 15 dias esta obra cheia de cinema lá dentro, como uma sequência de cenas num guião. Convidado a comentar no JL a atracção permanente sobre este romance, num país em que a maior parte dos homicídios são passionais, o filósofo José Gil, chama-lhe «thriller de afectos e paixões». Conta-se que, quando Manoel de Oliveira pediu subsídio para seu projecto de adaptação (estreado em 1979), lhe perguntaram pelo guião. Ele estendeu o livro e respondeu: «Está aqui o guião». Amor de Perdição faz parte daquela categoria de livros, que, segundo Oliveira, quando se sacodem, não cai nada, nem um capítulo nem uma palavra, porque nada lá existe de acessório. E então, filmou tudo, literalmente linha a linha, com o narrador em voz off. As próprias circunstância em que Camilo o escreveu são fílmicas. Estava então (1861), com 35 anos, encarcerado na Cadeia da Relação do Porto, por dormir com a mulher de outro (Ana Plácido, 31 anos). A escrita sobre sofrimentos amorosos alheios, de faca e alguidar, ter-lhe-á servido de catarse, Camilo sangrava através da pena.

A história tem a simplicidade de um what if hitchcockiano: boy meets girl. E depois tudo corre mal. Camilo remonta a acção a 1780, «ainda os apóstolos da revolução não tinham podido fazer reboar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo». O casal de apaixonados são espíritos mortificados, fidalgos beirões, andam de liteira, habitam palacetes, e estão cercados de criadagem... No filme, Barroso acrescenta-lhe o artigo indefinido – Um Amor de Perdição – e as personagens são miúdos de liceu, de agora, mais parecidos com personagens de Gus Von Saint (na sua fase pré-Milk), embora se lhes note o brilho febril do fanatismo que todos os adolescentes carregam. E é isso que é fascinante no filme de Mário Barroso, a sua brilhante capacidade de verter para os dias de hoje um enredo de amores funestos, honra e pundonor (que é uma palavra que já nem consta dos correctores ortográficos dos computadores) – sem nunca parecer ridículo. Porque, explica Barroso, os adolescentes são iguais em todos os tempos, ferve-lhes o sangue, desafiam o mundo, são um contra todos. Só que no tempo de Camilo os pais aprendiam-lhes o tinteiro, agora confiscam-lhes o telemóvel.

Outro aspecto muito bem conseguido no filme: permite uma dualidade de visões. Tanto pode ser olhado por teenaagers, que nunca se leram em Camilo, como pode ser sondado, à procura de Camilo em cada canto, em cada plano, como quem procura um Wally numa multidão. E o engraçado é que o escritor severo, polemista devastador, de lunetas e cartola anda por ali, pelos ginásios de um liceu do século XXI, por aquelas travessias de Lisboa em motorizada, por aquela família meio disfuncional (vivem juntos mas nunca em conjunto), num canário morto como uma premonição, num cruxefixo na parede, no mais anacrónico graffiti da história do cinema: «A submissão é uma ignomínia». Nenhum adolescente fala assim, mas todos os adolescentes pensam assim. E se todos os bons filmes têm um plano ou uma frase-chave, que o condensa em si, então todo Um Amor de Perdição pode resumir-se no título deste artigo. É a insolência do desafio. Ponto. Ou, nas palavras de Camilo, o «arrebol dourado e escarlate da manhã da vida»! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores». «Sempre defendi que o cinema é coisa de adolescentes», afirma Barroso, que lembra …

No filme Simão Botelho é um arruaceiro de classe alta. No filme Simão (magnífica estreia de Tomás Alves) é um arruaceiro de classe alta. No livro, Simão gosta de andar por Coimbra a semear desacatos, insulta os habitantes, provoca-os «à luta com assuadas», emprega em pistolas o dinheiro dos livros, parte cântaros e cabeças de trinta aguadeiros na ensanguentada cena da fonte... No filme arremete contra os porteiros das discotecas do Cais do Sodré. Barroso retirou todos os elementos nortenhos (o guião é de Carlos Saboga). Não lhe interessavam. Quanto muito aventou a hipótese de situar a história ainda mais a Sul, no Alentejo, para «filmar fisicamente o calor». Ficou-se por Lisboa. Também desinteressou-se quase por completo de Teresa Albuquerque, a anémica fidalga da janela, que escreve cartas maravilhosas e juramentos de constância. Ela (Ana Moreira) é uma espécie de reflexo, quase não aparece, não se revela, é uma representação. O realizador chegou a ponderar não a mostrar de todo, torná-la algo abstracto, que sustentasse a ideia de que poderia nem existir, senão na mente delirante de Simão, apaixonado pela ideia de estar apaixonado. Mas acabou por resumi-la a breves aparições, como uma miúda «um bocado apanhada» lá do liceu, com excesso de protecionismo paterno (brevemente protagonizado pelo próprio Mário Barroso).

Na era do Facebook e da Internet, os dois são impedidos de comunicar. A total ausência de contacto físico entre os dois amantes é compensada no filme pela ambiguidade sexual, entre a mãe (Ana Padrão) e o filho mais velho (Rafael Morais), ou entre o próprio Simão e a irmã mais nova (Patrícia Franco). A insinuação de incesto não está em Camilo, «mas pensei que talvez pudesse estar no seu espírito», diz Barroso. Se a dupla Simão e Teresa se alimenta de puro platonismo e obstinação, já o par Simão e Mariana (Catarina Wallenstein) transborda de química e sensualidade. Mas isso já está em Camilo. É como se Simão amasse em separado, a parte física em Mariana, a parte espiritual em Teresa.

Se em Lobos (2008), de José Nascimento Catarina Wallenstein era uma promessa do cinema português, em Um Amor... é um valor acrescentado. No livro, a abnegada Mariana é descrita como «moça de 24 anos, formas bonitas, um rosto belo e triste», cobiçada por um carcereiro: «Bem mais bonita do que a fidalga», atira, à sua passagem. No livro e no filme, ela é de outra de condição. No século XVIII, filha de ferrador, hospitaleiro homem que contém crueldade e fidelidade em idênticas proporções, anda sempre com ganas de pregar com a cabeça de alguém numa esquina, e recita um ditado: «Morrer por morrer, morra o meu pai que é mais velho». No século XXI, filha de um garagista (Virgílio Castelo), não tão rude nem não tão sanguinário, mas com experiência de vida e de morte, suficiente para tratar em casa a ferida de um Simão baleado. No livro diz o pai à filha: «Cura-a com vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa»

Para além do casting, onde todos os actores combinam e os pares são compatíveis (e quando o casal do filme «não funciona» o filme acabou), Barroso têm um cuidado especial com a apresentação das personagens. Rapidamente, sem rodeias, com a mesma secura de meios, com que fez Camilo. Mariana aparece de vestido vermelho numa discoteca, e em seguida de fato de macaco. Simão, surge de súbito no ginásio, mal acompanhado por «chungas» de capuz à rapper. E, de uma só cajadada, interrompe a peça que a turma está a ensaiar (Romeu e Julieta) e o sexo clandestino e homossexual do irmão Manuel. Não é por acaso, que Barroso lhe concede um quarto, na casa da família burguesa, em Sinta, completamente despojado e monascal. E que coloca na parede, a surgir de relance, um cartaz de um homem-bomba palestiniano. Simão é um fundamentalista do amor. «A sua revolta contra a sociedade, o seu radicalismo destrói tudo e todos à sua volta. É assassino, homofóbico, tem uma intolerância quase talibanesca. Tudo em que toca seca», comenta o realizador. Ele sente a impaciência de um tigre dentro de graders, tão depressa incita Teresa a matar-se, como a tranquiliza. Às fases de bonança de espírito sucedem-se grandes tempestades, grandes raivas, projectos de vingança. Mas por outro lado, é um herói puramente cinematográfico, um misto de James Bond, com Clint Eastwood, nos filmes de Serge Leone, e Humprey Bogart no Casablanca. Quando o ferrador João da Cruz o assusta intencionalmente e exclama: «O senhor nem sequer mudou de cor», ele responde: «Eu nunca mudo de cor, senhor João». Quando o espera o patíbulo, e o Meirinho o incita a fugir, ele retorque: «Eu não fujo». Amor é fogo que arde, e ele queima-se na sua própria combustão. Porque é assim, desvairado, inabalável, destrutivo. Ainda leva muito a sério estas coisas da paixão. Até ao sacrifício total. De alma e corpo.«Amou, perdeu-se e morreu amando»

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