Singularidades de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira
Estranheza que se entranha em Singularidades de uma Rapariga Loura. Como é que o realismo de Eça se converteu na inverosimilhança de Manoel Oliveira?
Pela primeira vez, Oliveira adapta um romance realista. Tenta também apanhar algo do espírito de Eça, naquela imensa finura e talento do grande escritor, ao introduzir notas de estranheza e de anti-clímax nas situações de maior dramatismo. O que ocasiona inesquecíveis episódios como aquele em que, em Os Maias, Vilaça, o gestor da fortuna da família, está sempre a interromper, à procura de um chapéu, a dolorosa conversa entre Ega e Carlos, no pico da tragédia, quando este lhe conta que é amante da própria irmã.
Oliveira tenta introduzir também este pequeno grão de absurdo que intercepta o melodramatismo. John Ford, também o sabia fazer, quando, por exemplo em She Wore a Yellow Ribon, o comandante John Wayne sentado no seu cavalo faz um discurso de agradecimento às suas tropas, que lhe oferecem um relógio. Wayne emociona-se, mas Ford para evitar que a cena ficasse demasiado lamechas, lembra-se durante a rodagem, de o fazer colocar uns óculos no nariz. Enfim, são expedientes dramáticos, muito subtis, tão geniais quanto insignificantes. Mas que fazem toda a diferença. Oliveira também tenta um destes expedientes narrativos, mas de forma tão desastradamente anacrónica que em vez de introduzir um contra-balanço ao drama só agiganta o ridículo. O absurdo em cima do absurdo, pura e simsplemente anula-se....
Na cena, em que Macário (Ricardo Trêpa) se sente desesperado e arruinado, a ver o seu namoro com Luísa a naufragar no Tejo, está para ali, parado no Cais das Colunas, a sofrer imenso, e passa um transeunte a dizer: «você viu o meu chapéu?», «um chapéu que eu estimava tanto…». A cena foi inspirada num episódio de A Capital. O que em Eça se entranha por ser estranho. Em Oliveira já nem estranha…
Eça: «Começou por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava Macário.» Assim se inicia o conto de Eça, Singularidades de um Rapariga Loura, com esta confidência a um companheiro de viagem (o narrador), numa estalagem do Minho. Macário era «linfático e tímido». Seu tio, dono de um armazém de panos, em Lisboa, «compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário e deu-lhe a escrituração»; «Aos 22 anos, ainda não tinha – como lhe dizia uma velha tia (...) sentido Vénus»
Oliveira: o realizador colocou o protagonista a contar a sua desdita a uma interlocutora (Leonor Silveira), durante uma viagem de comboio ao Algarve. Segundo afirma o cineasta, «o cinema não pode filmar o passado sem se transportar para esse tempo». Este Macário do século XXI parece saído do túnel do anacronismo. Ele vive numa Lisboa onde os sinos repenicam, num escritório sem computadores, habita um quarto monástico e frequenta o Círculo Eça de Queirós, onde Luís Miguel Cintra recita Pessoa e alguém toca harpa, a única música do filme.
Oliveira conserva o mesmo escrúpulo religioso de reproduzir na íntegra o diálogo de Eça. Macário em conversa com o tio Francisco (Diogo Dória), o mau da fita: «Peço-lhe licença para casar.» «Não!» «Perdão, tio Francisco.» «Não.» «Nesse caso, faço-o sem licença.» «Despedido de casa.» «Hoje.» «Hoje.» Exasperado, apoplético, o tio ainda acrescenta: «Dê-me aí a caixa de rapé...»
Eça: Enquanto sai à janela a aparar um lápis, Macário avista esta rapariga à janela do terceiro andar do prédio, em frente. «Fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa da transparência das velhas porcelanas, e havia, no seu perfil, uma linha pura, como de uma medalha antiga, e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado – pomba, arminho, neve e ouro.»
Oliveira: Desta vez, o realizador não quis recorrer às «suas actrizes do costume». «Pareceu-me interessante que a rapariga fosse mais original, dá mais autenticidade à figura.» Estava sentado a trabalhar, quando a apresentaram. Nem se levantou, olhou para ela, aprovou e disse-lhe: «Está bem, mas ponha-se loura.» Loura e sempre agarrada a um estranho leque chinês, em que Eça insiste bastante: uma ventarola com dragões escarlates e plumagens azuis. Catarina Wallenstein, apesar de ter tido pouquíssima margem de manobra interpretativa neste filme (basicamente era dirigida através das marcações e posturas), firma-se como uma excelente actriz.
Pela primeira vez, Oliveira adapta um romance realista. Tenta também apanhar algo do espírito de Eça, naquela imensa finura e talento do grande escritor, ao introduzir notas de estranheza e de anti-clímax nas situações de maior dramatismo. O que ocasiona inesquecíveis episódios como aquele em que, em Os Maias, Vilaça, o gestor da fortuna da família, está sempre a interromper, à procura de um chapéu, a dolorosa conversa entre Ega e Carlos, no pico da tragédia, quando este lhe conta que é amante da própria irmã.
Oliveira tenta introduzir também este pequeno grão de absurdo que intercepta o melodramatismo. John Ford, também o sabia fazer, quando, por exemplo em She Wore a Yellow Ribon, o comandante John Wayne sentado no seu cavalo faz um discurso de agradecimento às suas tropas, que lhe oferecem um relógio. Wayne emociona-se, mas Ford para evitar que a cena ficasse demasiado lamechas, lembra-se durante a rodagem, de o fazer colocar uns óculos no nariz. Enfim, são expedientes dramáticos, muito subtis, tão geniais quanto insignificantes. Mas que fazem toda a diferença. Oliveira também tenta um destes expedientes narrativos, mas de forma tão desastradamente anacrónica que em vez de introduzir um contra-balanço ao drama só agiganta o ridículo. O absurdo em cima do absurdo, pura e simsplemente anula-se....
Na cena, em que Macário (Ricardo Trêpa) se sente desesperado e arruinado, a ver o seu namoro com Luísa a naufragar no Tejo, está para ali, parado no Cais das Colunas, a sofrer imenso, e passa um transeunte a dizer: «você viu o meu chapéu?», «um chapéu que eu estimava tanto…». A cena foi inspirada num episódio de A Capital. O que em Eça se entranha por ser estranho. Em Oliveira já nem estranha…
Eça: «Começou por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava Macário.» Assim se inicia o conto de Eça, Singularidades de um Rapariga Loura, com esta confidência a um companheiro de viagem (o narrador), numa estalagem do Minho. Macário era «linfático e tímido». Seu tio, dono de um armazém de panos, em Lisboa, «compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário e deu-lhe a escrituração»; «Aos 22 anos, ainda não tinha – como lhe dizia uma velha tia (...) sentido Vénus»
Oliveira: o realizador colocou o protagonista a contar a sua desdita a uma interlocutora (Leonor Silveira), durante uma viagem de comboio ao Algarve. Segundo afirma o cineasta, «o cinema não pode filmar o passado sem se transportar para esse tempo». Este Macário do século XXI parece saído do túnel do anacronismo. Ele vive numa Lisboa onde os sinos repenicam, num escritório sem computadores, habita um quarto monástico e frequenta o Círculo Eça de Queirós, onde Luís Miguel Cintra recita Pessoa e alguém toca harpa, a única música do filme.
Oliveira conserva o mesmo escrúpulo religioso de reproduzir na íntegra o diálogo de Eça. Macário em conversa com o tio Francisco (Diogo Dória), o mau da fita: «Peço-lhe licença para casar.» «Não!» «Perdão, tio Francisco.» «Não.» «Nesse caso, faço-o sem licença.» «Despedido de casa.» «Hoje.» «Hoje.» Exasperado, apoplético, o tio ainda acrescenta: «Dê-me aí a caixa de rapé...»
Eça: Enquanto sai à janela a aparar um lápis, Macário avista esta rapariga à janela do terceiro andar do prédio, em frente. «Fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa da transparência das velhas porcelanas, e havia, no seu perfil, uma linha pura, como de uma medalha antiga, e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado – pomba, arminho, neve e ouro.»
Oliveira: Desta vez, o realizador não quis recorrer às «suas actrizes do costume». «Pareceu-me interessante que a rapariga fosse mais original, dá mais autenticidade à figura.» Estava sentado a trabalhar, quando a apresentaram. Nem se levantou, olhou para ela, aprovou e disse-lhe: «Está bem, mas ponha-se loura.» Loura e sempre agarrada a um estranho leque chinês, em que Eça insiste bastante: uma ventarola com dragões escarlates e plumagens azuis. Catarina Wallenstein, apesar de ter tido pouquíssima margem de manobra interpretativa neste filme (basicamente era dirigida através das marcações e posturas), firma-se como uma excelente actriz.
1 comentário:
Conseguir referir o John Ford na propósito de um filme do Oliveira acho por si só notável. Se calhar o que o Trêpa devia fazer era westerns... Tem ar de vaqueiro
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