sexta-feira, 13 de março de 2009

Factor K



Já andamos há 10 anos sem Stanley Kubrick. Como é que o cinema conseguiu passar sem ele? Mal, mesmo muito mal






Há realizadores bons. Há realizadores muito bons. Há realizadores melhores ainda. Há realizadores imprescindíveis. Numa classificação de Brecht, agora mesmo adaptada ao cinema, Stanley Kubrick (1928-1999) pertence à última categoria. De cada vez que Kubrick filmava (em 70 anos de vida fê-lo apenas 16 vezes, contando até com as curtas iniciais), o chão mexia-se debaixo dos pés. Foi um realizador sísmico, os seus filmes fizeram mover as placas tectónicas e a geologia cinematográfica não voltou a ser a mesma. Clássicas são aquelas obras que precisam mesmo de ser inventadas. Foi que fez Kubrick a vida toda (morreu há 10 anos, no dia 10 de Março), inventou clássicos.

E inventar é mesmo a palavra inteira e única. Kubrick era um inventor, da mesma estirpe de Orson Welles ou Akira Kurosawa. Com uma inquietude de espírito renascentista, inaugurou efeitos visuais, experimentou, instaurou, ousou... E depressa o seu apelido se converteu em adjectivo – kubrikiano - que é algo que só acontece a que tem voz própria. Naquele seu orgulho perfeccionista, partiu sempre nas direcções mais improváveis, em vez de se ficar a acrescentar pegadas aos trilhos de rastos pisados pelo sucesso garantido. Nunca repetia o que já fora feito – nem sequer por ele próprio. Realizava filmes de género, grandiosos sempre, com orçamentos de milhões, e receitas de bilheteira bilionárias. Depois do épico histórico Spartacus (1960), guinava para os antípodas, para o drama sexual Lolita (1962), e daí para a sátira negra Dr Estranho Amor (1964), antecessor da obra magistral da ficção científica, até hoje insuperada, 2001, Odisseia no Espaço (1968)...

Em cinco décadas fez quatro filmes de guerra, dois policiais, dois de ficção científica, dois épicos históricos, um de terror, dois sobre sexo... No fundo, como o monólito do 2001,... emanação de uma inteligência alienígena superior, que aparecia à superfície da Terra para testemunhar e incentivar os saltos na evolução humana, cada filme kubrikiano também teve esta função, a de fazer o cinema mundial escalar mais um degrau.


Realizador ‘monolítico’

O monólito na sua própria vida aconteceu-lhe aos 13 anos, quando o pai, lhe ofereceu uma máquina fotográfica. Ou talvez lhe tenha acontecido antes, quando aprendeu a jogar xadrez. Ou um pouco depois, quando descobriu um certo disco de Prokoviev que punha a tocar obsessivamente. Foram mais ou menos estas as paredes mestras que sustentaram toda a sua monumental obra: o lado visual da fotografia, o cerebral do xadrez e o emocional da música.

Nasceu em Nova-Iorque, numa família de ascendência austríaca, no período de entre as guerras. E a guerra marcou presença nos seus filmes, como estufa incubadoura de emoções e sentimentos extremos. A guerra do Vietname, em Nascido para Matar (1987), a Guerra dos Sete Anos, em Barry Lyndon (1975), a Guerra Fria, em Dr Estranho Amor (1964), a revolta dos escravos no tempo dos romanos, em Spartacus (1960), a Primeira Guerra Mundial, em Horizontes de Glória (1957)... Para lá das evidências, outras guerras bem menos reais e exteriores ocuparam Kubrick: os conflitos interiores, a dualidade, a luta entre o «eu» bom e o «eu» mau... Nos seus filmes, há sempre alguém que enlouquece, alguém que tem uma pequena avaria, um desajuste cerebral (seja um homem ou o computador Hall 9000). Alguém que está ensanduichado, entre circunstâncias externas hostis, e circunstâncias internas, infaustas e contraditórias. Assim se passa com Humbert Humbert (James Mason), o professor de literatura de Nabokov que se consome em instintos assassinos para ficar viúvo e consumar o seu amor pedófilo; com o pai de família Jack Torrance (Jack Nicholson) que tem como missão guardar o sinistro Hotel Overlook, escrever um livro e matar a família; com Alex, que adora tanto a violência como a 9ª sinfonia de Beethoven; com Bill (Tom Cruise), um médico nova-iorquino obcecado com a infidelidade interior da mulher...

Kubrik realiza com a frieza meticulosa de quem avalia os movimentos antes de mover uma peça no tabuleiro. A sua assinatura estilística é reconhecível pelos famosos planos sequência, pelos travellings atrás, pelos improváveis ângulos de enquadramento, pela profundidade de campo, pelas simetrias, por algumas câmaras à mão, olhares fixos, música poderosa e silêncios. Por vezes parece que usa a câmara para pintar um quadro com luz e som.

Passa horas a iluminar o cenário, deixa actores e técnicos extenuados de tanta repetição de takes, tem um rigor desmedido, uma imensa atenção ao pormenor. Em Barry Lyndon, arranja uma lente especial construída pela NASA para permitir que as câmaras captassem a imagem apenas com a iluminação de velas. Até as perucas são construídas, como no século XVIII, com cabelo verdadeiro. 2001, ...foi um caso de depuramento filosófico. Nestas duas horas e quarenta de filme (apenas quarenta minutos têm diálogos) Kubrick atinge uma espécie de essência, depois de um processo de perfeccionista decantamento. O filme absorve-se ao nível do subconsciente, mais como uma pintura ou uma música. Como uma paisagem musical ou uma narrativa visual. É impossível voltar a ouvir Richard Strauss sem pensar na maior elipse da história do cinema, do osso à nave, da técnica que dominamos à técnica que nos domina. Ou escutar o Danúbio Azul, do outro Stauss, e não pensar na valsa dos planetas. Nem escutar Handel sem pensar em Lyndon. Nem voltar a ver uma criança a pedalar o seu carrinho por um corredor sinuoso sem pensar em Shinning. Nem lembrar o sorriso benévolo do feto astral que encerra o 2001,... e o sorriso malévolo de Alex, que abre o Laranja Mecânica, sem pensar em Kubrick. E que tudo isto é, afinal, uma grande ironia.

1 comentário:

Gilberto Grão de Areia disse...

O melhor realizador até à data, não fosse eu grande fã do trabalho genialmente eterno de Kubrick. Basta ver que, mesmo passadas décadas e falecido Kubrick, o realizador continua a estar à frente no seu tempo.

Há coisas que se tornam antigas.
Há outras que se tornam eternas.

Muito agradeço este tributo a Kubrick, como fã do realizador e assídua deste blogue.

:)