quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Olá ó vida malvada!

Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra




Não há terceira via no filme da dupla Tiago Guedes /Frederico Serra. Ou se é carneiro ou se é fera. Ou se está na clareira ou na selva. Ou no preto ou no branco. As personagens de Entre os Dedos pertencem definitivamente à categoria dos que se movem em rebanho, ruminam a existência numa clareira seca de oportunidades, do lado negro da vida. A meio do filme, escuta-se, em segundo plano, um excerto de conversa sobre um carneiro que nem reage enquanto um lobo lhe devora uma perna. Entre a apatia e o desamor, também as pessoas que povoam esta segunda longa da dupla nem reagem por aí além, quando o emprego, as relações, o casamento, e a vida em geral, se lhes escapam entre os dedos. Estão sem pulso, como o operário soterrado que abre a primeira cena. São seres dos tristes subúrbios lisboetas, passam muito tempo nas cozinhas dos apartamentos, e a opção estética dos realizadores pelo preto e branco acentua-lhes as olheiras e a intensidade do olhar. A câmara segue-os de perto, mesmo muito perto, em close-ups apertados. Às vezes desenquadra-os enquanto falam. E vacila o tempo todo. Algo nos remete para o Magnólia de Paul Thomas Anderson. Remete-nos, para nos afastarmos radicalmente logo a seguir. Não é só a estrutura fragmentada da narrativa. Nem só a negritude dos destinos sem redenção possível. É que aqui também há um doente terminal (Gonçalo Waddington) a morrer em casa, relações parentais não resolvidas, e uma enfermeira (Lavínia Moreira) que é a única figura benigna da história. Mas ao contrário do guião de Magnólia, em que todas as personagens são poderosíssimas, neste nenhuma é suficientemente marcante nem parece ter força que baste para agarrar as pontas do filme. E no final ficamos com a sensação de argumento que inicia a escalada, mas que fica a meio da montanha, num filme-planalto, com personagens não evolutivas, que acabam no exacto ponto em que começaram. O que defrauda algumas expectativas prometidas pela coerência estética de todo o filme e pela excelente direcção de actores. Aliás, o casal âncora do argumento (Filipe Duarte e Isabel Abreu) tem uma funcionalidade cinematográfica exemplar. Ele é um homem das obras no desemprego que passa o dia a abrir o frigorífico em busca de uma cerveja e a jogar cartas com um grupo de malandros. Ela é mulher de limpeza e está «muito farta disto. Ando à muito tempo a puxar esta porra toda sozinha». Entre os Dedos é mais um exemplo de que a aritmética cinematográfica se faz de outras contabilidades. Um filme não é a soma das partes boas. E este tem muitas. A cena da troca de olhares entre as duas empregadas de limpeza quando uma esconde no bolso uma peça de roupa interior. O velho pai (Luís Filipe Rocha), que tem o síndroma do colonizador, a ser esbofeteado por um membro de um gangue. O almoço da (des)união familiar. A discussão conjugal em que dois vultos que se batem na sombra. Aquela em que a mãe disfuncional (Fernanda Lapa) pára com o pé a bandeja que o filho moribundo lançou para o chão – «Porque não desistes?», pergunta-lhe ele. Ou a em que a velha avó (Eunice Munoz), que já não distingue se é dia se é noite, passa indiferente pelo crime em flagrante. Ou a luta entre o pai e o filho que acaba numa espécie de abraço. E sobretudo a cena final, quando o casal desavindo caminha lado a lado. Ainda há luz ao fundo do subúrbio.

Sem comentários: