domingo, 28 de setembro de 2008

O efeito dos raios gama nos olhos de Paul Newman

Foi o actor holliwoodesco menos holliwoodesco do mundo. Ficam cinco décadas de filmes e o seu olhar azul, azul, azul






«Sabes o que estás a fazer?», pergunta-lhe a rapariga de vestido branco e comprido. «Teoricamente», responde-lhe ele. E por entre umas cortinas esvoaçantes, começam os primeiros acordes de Raindrops Keep Fallin' on My Head, a música de Burt Bacharach, composta propositadamente para o filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), de George Roy Hill.

E a meio de um western pós-moderno, cheio de bandidos, ladrões de bancos e estradas poeirentas, aparece um dos mais luminosos e musicais momentos cinematográficos de sempre. Paul Newman montado numa bicicleta, com colete e chapéu de coco, guia a rapariga de branco (Katharine Ross), sentada no volante, através de um campo e de um pomar, num dia de sol radioso. Não há nuvens no céu, nem um pingo de chuva. Três minutos e dez segundos (cronometrados) de felicidade pura: «Raindrops keep fallin' on my head/ But that doesn't mean my eyes will soon be turnin' red/ Cryin's not for me…». Não podia haver tema menos funéreo para se recordar um morto. Todo o futuro canta nesta canção para um actor que acaba de perder o seu.

Paul Newman (1925-2008), 83 anos de vida, 50 de carreira e perto de 60 filmes, saiu da mesma fornada de grandes actores de Hollywood como Marlon Brando e James Dean. Tinha uma das caras mais famosas do planeta, dizia-se que podia ter sido esculpida por Miguel Ângelo. Os seus olhos, arrisca-se, talvez fossem mais famosos do que os de Bette Davis. Um só olhar bastava-lhe, mas a verdade é que não lhe bastou. Não parecia tão impressionado consigo próprio quanto as legiões de fãs... quando ele tirava os óculos escuros. Uma vez disse a uma senhora que parecia desmaiar enquanto o contemplava: «Desculpe, mas parece-me que acabou de guardar o cone de gelado na sua bolsa…».

Sabia do efeito que provocava, mas conseguiu a rara combinação de magnetismo com humildade. Ajudava milhares de crianças desfavorecidas, mas nunca se vangloriou disso. Criou campos de férias para miúdos com doenças graves, mas nunca autorizou a entrada de jornalistas. Era perseguido pelas revistas, mas evitava deixar-se fotografar em família. Foi casado durante 50 anos com a sua segunda mulher (a actriz Joanne Woodward) – e isso diz tudo acerca do seu estilo de vida dissonante, longe do star system de Hollywood e seus casos e descasos espalhafatosos… Tinha cancro nos pulmões (era um grande fumador), mas recusou-se sempre a falar do assunto: «It's nobody’s business». Por isso, façamos-lhe a vontade e volte-se às gotas de chuva sobre a cabeça...

No mesmo filme, ele e Robert Redford (Sundance Kid) estão encurralados, numa ravina. Newman pronuncia a famosa frase: «Da próxima vez que eu diga 'vamos para a Bolívia', vamos para a Bolívia.» Redford diz-lhe que não salta do precipício para o rio, não sabe nadar, confessa. O riso de Paul Newman: «A queda mata-te antes.» E lançam-se.

Newman's blues
Paul Leonard Newman lançou-se, após a segunda guerra, quando decidiu largar o próspero negócio familiar (o pai tinha uma loja de desporto em Cleveland) para estudar representação na Yale Drama School. Em 1952, ingressou no Actor's Studio. Algumas peças de teatro depois, foi avistado por um agente, descobridor de talentos. Newman tinha-o. Trabalhou com os nomes mais prestigiados do cinema mundial: Arthur Penn, Alfred Hitchcock, Robert Altman, Martin Scorsese, Sidney Lumet, Sidney Pollack. Na vida, foi realizador (Rachel, Rachel, de 1968, ou O Efeito dos Raios Gama nas Margaridas do Campo, de 1972), actor famosíssimo e muito premiado (dez nomeações e três Oscars), activista político (era um homem de esquerda, para os padrões americanos, e o número 19 na lista de inimigos de Nixon), piloto de automóveis (o seu nome aparece no Guinness Book como o piloto mais velho a ganhar uma corrida oficial, por ter vencido, aos 70 anos, as 24 Horas de Daytona), filantropo, gestor sereno da sua carreira, um cidadão normal. Na película, encarnou personagens criadas por Faulkner, Hemingway, Tennessee Wiliams... Herói, vilão, pugilista, charlatão, detective, fora-da-lei, citadino, campónio, jogador de snooker, oficial judeu… E é assim que gostamos de o lembrar. Com pingos de chuva na cabeça.

Sem comentários: