terça-feira, 20 de maio de 2008

Arma branca

Nada Meiga, de Jeanne Waltz



O título deste post é totalmente desadequado. A única arma que se utiliza no filme é de fogo. Neste filme não existem lâminas perfurantes, cortantes, retalhantes, sangrantes... Não há reacções passionalmente descontroladas, emocionalmente arrebatadas, descontroladamente desordenadas. Não há sangue, nem lágrimas, nem agitações. Apenas a frieza da premeditação, a indiferença da distância... E o projéctil colocado na câmara, o encaixe do carregador, o som seco do disparo... A estas armas é que se deviam chamar brancas, fica-se a pensar depois de ver Pas Douce (Nada Meiga), segunda longa de Jeanne Waltz, realizador suíça residente em Portugal.

Tudo é branco no filme de Jeanne Waltz. Claustrofobicamente branco e ordenado, dolorosamente gélido e equilibrado. Fred, a protagonista tem um olhar glacial. Move-se entre as higiénicas floresta da Suíça, as ruas domesticadas da cidade, e os assépticos corredores hospitalares onde trabalha. É enfermeira, faz os turnos da noite, veste bata branca, limpa e desinfecta os outros. Não parece nada doce nas palavras nem nos gestos. Transporta com ela a dureza de um passado, a aspereza da desilusão amorosa. Mas a realizadora faz notar, logo no início do filme, que existe em Fred um reservatório de doçura, quando, nos últimos momentos de uma doente terminal, lhe envolve as mãos, com a delicadeza de um sopro. E em seguida segura uma flor.

Fred prepara um suicídio com a frieza da precisão. Selecciona o local junto a uma árvore, prepara as coisas em casa, toma banho, dispõe as fracções da arma, com o rigor com que um ajudante de cirurgião dispõe os instrumentos, antes da operação. Encosta o cano à garganta. Mas a irreflexão, o inesperado, o acidental são sinal de vida. E este imponderável do gesto interrompe-lhe a premeditação da morte.

Dificilmente se encontra uma coesão tão segura entre a personagem e a actriz escolhida. Parecem feitas uma para outra. A translucidez do olhar azul da francesa Isilde Le Besco encaixa cirurgicamente na pele daquela personagem à beira de um limite silencioso e limpo. E branco. A actriz tem a lividez do espaço, da neve suíça, dos corredores asseados de hospital. Tem também aquele sorriso impossível, de quem quase sufoca. Mas ainda respira, porque o ar ainda passa. E este é outro dos aspectos mais conseguidos do filme de Waltz, a progressiva, contida e subtil evolução da personagem. E forma como a narrativa avança e câmara capta os pequenos traços miniaturais de doçura na brancura do caminho.

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