segunda-feira, 5 de maio de 2008

Momentos INDIE

Night Train, de Diao Yinan


É um filme que tem o mais desencantado dos bailes. E uma incrível e desolada casa altaneira, como um farol fluvial, ao cimo de uma ponte, sobre a barragem. E uma paisagem fabril acrabrunhante e cinzenta na China. E um julgamento, em que a ré tomba, quando lhe é sentenciada a pena de morte, e é a oficial de justiça (a protagonista do filme) quem a sustém e a mantém de pé, para que prossiga a leitura do acórdão, e se condene ainda mais a condenada a pagar as despesas do funeral da vítima. E depois... Depois há a cena do cavalo que puxa a carroça, dolorosamente espancado, até tombar também. Tão pungentemente dostoiévskiana, que nos remete ao primeiro instante para o russo Crime e Castigo. Não é só todo o ambiente torturador do filme, o crime, o castigo, a culpa, o crime outra vez, o sacrifício... É mesmo a cena do cavalo que parece decalcada daquela que Raskolnikov presencia (em sonhos) e que, de tão dilacerante e cinematográfica, é aquela que talvez mais retenha nas memórias arquivativas desses romance que mais gente cita do que lê. Mas no final da sessão, o realizador Diao Yian, através da tradutora, diz que não, nem se lembrava de que o Crime e Castigo tinha um cavalo. O resto do romance, sim, diz, tem tudo a ver com o seu filme, «a forma como as personagens carregam em mãos os seus destinos».

Night Train acompanha os solitários dias de um oficial de justiça – são raras as protagonistas quarentonas e pouco atraente. Esta é solitária, quarentona e pouco atraente, ou seja uma mulher banal, que tem esta profissão pouco banal de acompanhar e executar oficialmente as condenadas à morte. E divide o seu tempo entre as rotinas de morte da profissão e as rotinas de solidão no seu inóspito apartamento, no comboio, naqueles encontros contratuais e insatisfatórios da agência matrimonial. Até que um dia conhece um homem. O tal que habita uma casa faroleira numa barragem. E ele é o viúvo da mulher que executou. E há-de querer vingança, talvez, novo crime se antecipa, mas ela presencia a cena do cavalo, resigna-se a aceitar a sua culpa, o seu crime e o seu castigo. Ou talvez não seja nada disto porque o realizador diz que aquele é um filme optimista. Só se for como no romance, e também aqui se encontra a expiação no sofrimento...


Wonderful Town, de Aditya Assarat

Tem uma cadência quase ondular, esta primeira longa do tailandês Aditya Assarat, um vai-e-vem muito marítimo, quando se apodera de uns centímetros de areia e depois torna a recuar, mas avança, avança sempre. Inofensivo, pacífico, aparentemente benigno. E a história embarca na suposta benignidade, com a delicadeza dos enquadramentos e o equilíbrio da narrativa. E como o mar avança lentamente na areia, há um boy meets girl, muito convincente, muito bem construído, que vai ganhando terreno. Entre as toalhas ao vento, num estendal de pátio de hotel, numa cidade que tem o ar suburbano de uma qualquer cidade de terceiro mundo, em qualquer parte do mundo, a andar numa moto, nos lençóis revolvidos de uma cama (cenário insistente do filme), num campo que já foi antiga mina de campo, mas de que a natureza se voltou a apoderar... E é disto que trata o filme, da capacidade regeneradora, dos lugares, e das pessoas. Da Tailândia pós-tsunami, e suas ruínas, fantasmas e destroços. Das pessoas, depois da passagem tsunamica dos tumultos emocionais. E pensando bem, aquele mar que o realizador mostra, no princípio e perto do final do filme, tem um aspecto sinistro. Ameaçador, pois.


A Zona, de Sandro Aguilar

Dá a ideia de que Sandro Aguilar fez a curta experimental Arquivo - a tal que hipnotizava as plateias ao mostrar um peixe a sufocar numa mesa, enquanto bate no tampo num estranho ritmo mortal com a cauda – para chegar até A Zona (a única obra portuguesa na Competição Internacional) . Estão de regresso os ambientes sépticos e hospitalares, a luz metálica e azul-cinza de hospitais, canis e incubadoras. E os batimentos cardíacos, os bips das máquinas, o sufoco de uma respiração alterada, o choro de um bebé prematuro...E os grandes (gigantescos) planos, até aos pêlos, até aos poros. Entre o deslumbramento estético estudado até ao milímetro, entre o formalismo atmosférico, o mega-realismo (isto existe?) e o onírico, numa perseguição incansável da não linearidade. Descodificação? Só com PIN e PUK...


Occident, de Cristian Mungiu
Ainda sem o apuramento formal e narrativo de 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias, Occident, a primeira longa de Mungiu, já prenuncia do que o realizador é capaz. Occident é um filme notável, de um entrelaçamento raro de guião, onde vários planos se sobrepõem, e se ajustam, com o avançar dos minutos, como as peças de Tetris ao fundo do ecrã. Mas há sempre um intervalo vago a preencher, até que a última linha suma, e fique resolvida na cabeça do espectador. Até à seguinte, numa sucessão de casos cruzados, avanços e recuos no tempo, em que as personagens principais de uma história são as secundárias de outras, e assim sucessivamente. Enquanto a acção progride, o espaço em aberto está pronto a ser reposto pela peça que não tardará a cair – o Tétris outra vez. Mesmo que se tenham de trocar as voltas e dar o dito por não dito – estas são as regras. E nesta encruzilhada de perspectivas e conexões, está sempre a comédia a intrometer-se na tragédia (ou vice-versa), e o humor ácido a adocicar as vidas ainda em suspenso do pós-comunismo de Ceausescu. É ainda uma Roménia, também ela numa encruzilhada, entre o ficar e o partir. Mas que tem a imensa capacidade e optimisticamente regeneradora) de saber rir de si própria, enquanto chora.


One Day, de Ditte Haarlov Johnsen

Um documentário de meia hora sobre a vida de uma prostituta africana em Copenhaga. Sem recurso a voz off, nem a depoimentos ou entrevistas, apenas ao «áudio» de telemóvel desta mulher de quem só vemos fragmentos. Mas da visão parcial captamos o todo, de uma forma subtil, sem ruídos moralistas nem cair em voieurismo gratuitos. E das conversas telefónicas, ora com os clientes, naquele continente, ora com a filha, no outro, adivinhamos-lhe a vida passada, presente e futura. Tudo o que precisamos saber está naqueles estilhaços de imagens, naquelas mãos que escolhem lingeries. Ou naquela voz profissional com que atende as solicitações dos clientes (que se vislumbram de passagem na câmara do prédio). Ou naquela outra voz saudosa com que fala com a filha que vai mal na escola. É possível, sim, fazer coisas diferentes, sobre os temas de sempre, sem cair na vulgaridade televisiva. E esta obra (que venceu o Grande Prémio Indie das Curtas) era «só» um filme de licenciatura...

1 comentário:

rosava disse...

mais informo que a tradutora, através do blogger, faz notar que veio para casa nessa noite num nervoso imenso a pensar se tinha acertado com o título do livro em chinês. felizmente, tinha.

fiquei foi cheia de vontade de ler o crime e castigo que, grande falha minha, nunca li.

ah, e bom post!